Portuguesa, negra, cidadã europeia

Um governo de um país da UE que queira fazer sentir aos cidadãos europeus que não são bem-vindos só tem um caminho legítimo para o fazer — sair da União Europeia.

Linda Pereira, uma estudante portuguesa de sociologia que é voluntária no Corpo Europeu de Solidariedade, foi agredida física e verbalmente, com insultos racistas — Linda é negra —, na cidade polaca de Sosnowiec onde trabalha com crianças em situação de vulnerabilidade emocional e social. Quando a polícia chegou após ter sido chamada, deu-se uma situação ainda mais reveladora: ao passo que os colegas que a ajudaram e tentaram salvar, também de outros países europeus, mas brancos, foram pedidos apenas os bilhetes de identidade, a Linda Pereira era pedido insistentemente o passaporte. O pressuposto é evidente: como se uma negra não pudesse ser cidadã europeia. Mas pode, e é, e é isso que faz de um caso como este especialmente merecedor de atenção.

Comecemos pelo contexto. A Polónia é o país onde a pertença à União Europeia é mais popular. Em todos os eurobarómetros são sempre mais de noventa por cento os polacos a quererem que o seu país permaneça na União Europeia. E uma das principais razões para essa popularidade é, ao contrário do que se possa pensar, a liberdade de circulação. Com a liberdade de circulação na União Europeia, os polacos ganharam o direito de viver, estudar ou trabalhar em outros 27 países do continente europeu.

Pois bem, aquilo que vale para os polacos no resto da União Europeia é também o que tem de valer para os outros cidadãos europeus na Polónia. A liberdade de circulação não pode ser sacrossanta para os polacos no resto da UE e um risco para os outros europeus na Polónia, se se der o caso de serem negros. Se cada país tem o direito de determinar as suas políticas de estrangeiros, de fronteiras e de imigração, não pode ser esquecido que a Polónia decidiu em plena consciência uma parte dessas políticas quando quis, através da adesão à UE, conquistar a liberdade de circulação para os seus cidadãos. De acordo com essa decisão soberana, a Polónia comprometeu-se a tratar uma cidadã europeia como Linda Pereira não como uma imigrante, mas como uma cidadã europeia exercendo direitos recíprocos de que os polacos também gozam. E pelos Tratados e pela Carta de Direitos Fundamentais, comprometeu-se a que esses direitos fossem usufruídos sem qualquer discriminação de origem ou racial.

Isto é apenas a basezinha. O próprio governo polaco, ainda que seja agora um governo de um partido ultra-conservador e nacionalista, estará muito consciente de tudo o que foi dito atrás. O problema é quando governos como o polaco ou o húngaro acham que não têm de fazer o suficiente para que estes direitos sejam usufruídos na sua plenitude. Há anos que relatórios do Parlamento Europeu notam que as autoridades policiais e judiciárias polacas e húngaras não levam a sério os ataques racistas naqueles países e que os governos não fazem qualquer esforço para que haja uma mudança de atitude das autoridades no tratamento desses ataques. Jornalistas e ONG têm sugerido que esta desvalorização é deliberada, e que serve para demonstrar na prática que os estrangeiros não são bem-vindos. E isto é algo que não pode ser tolerado. Um governo de um país da UE que queira fazer sentir aos cidadãos europeus que não são bem-vindos só tem um caminho legítimo para o fazer — sair da União Europeia. Caso contrário, estará a dizer-nos que para todos os efeitos devemos considerar que os seus cidadãos devem ter mais direitos na nossa casa do que os nossos na casa deles.

É por isso que o apoio a um cidadã europeia como Linda Pereira deve ir mais longe do que o apoio consular normal. É necessário questionar as autoridades polacas sobre o que está a ser feito para que as autoridades policiais mudem a sua atitude e passem a agir decididamente contra este tipo de ocorrências, ou para que não exijam a uma cidadã europeia negra documentação exagerada ou desnecessária. Os direitos que estão nos Tratados da UE e na Carta de Direitos Fundamentais não são meros direitos no papel, princípios abstratos que não se destinam a ser exercidos por ninguém. São direitos reais, para pessoais reais, pessoas como Linda Pereira. Se as circunstâncias tornam o exercício desses direitos especialmente difícil, é como se o direito não existisse. E isso é grave não só para Linda Pereira mas para todos nós.

Mas há mais. Linda Pereira é voluntária de um novo tipo de programa europeu — o Corpo Europeu de Solidariedade, que permite a jovens entre os 18 e os 31 anos realizarem ações de solidariedade na UE e fora dela (os voluntários recebem apoio de viagem, alojamento, refeições, seguros médicos e um pagamento para despesas diárias). O Corpo Europeu de Solidariedade é uma das poucas boas ideias a nascer nas instituições da UE nos últimos anos, mas exige delas responsabilidade acrescida — nomeadamente à Comissão Europeia. As famílias dos voluntários não podem estar incertas quanto à segurança dos seus familiares ou dependentes dos humores de juízes politizados por governos de extrema-direita. A Comissão Europeia tem de dar apoio acrescido a estes voluntários — uma linha permanente para emergências é uma boa ideia, um contacto imediato com as autoridades melhor ainda, apoio jurídico imediato e gratuito é indispensável. Os voluntários estão ao serviço da UE e devem ser tratados, durante a vigência do seu voluntariado, como se fossem funcionários dela.

Linda Pereira decidiu, para já, não regressar da Polónia: “No meu trabalho com as crianças tenho percebido que tenho tido uma boa influência na vida delas. É uma boa influência ter alguém em termos culturais e mesmo em termos físicos diferente deles”. Ao ter estas considerações em mente, Linda Pereira está a fazer mais pelo projeto europeu do que muitos políticos. Mas não deve nem pode fazê-lo arriscando a sua segurança, e precisa da ajuda de todos os nós. Para que se perceba de uma vez por toda que ser cidadão europeu não é exclusivo de quem tem apenas um determinado tom de pele.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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