Hoje é sexta-feira — amanhã, Week-end?

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No ano em que estreia O Livro de Imagem, último filme de Jean-Luc Godard (JLG), uma sequência particular de um dos seus primeiros filmes não me tem largado: Week-end (1967), o do famoso travelling do engarrafamento. É justamente depois desse admirável exercício de mise-en-scène que JLG monta uma sequência — à primeira vista confusa ou críptica, como tantas outras suas — sobre a qual importa, nos dias que correm, relançar o olhar.

Conseguindo finalmente escapar do bíblico engarrafamento, o casal protagonista estaciona o carro num vilarejo para descansar por minutos, momento em que presencia um acidente entre um Triumph e um tractor e a violenta discussão que, nos mesmos caricaturais termos (e cómicos, não fosse o humor um dos atributos que alguns dos mais abespinhados críticos de JLG parecem não alcançar), se lhe segue entre uma “burguesa” e um “camponês” (donos dos respectivos veículos). O confronto vai sendo decupado por planos do namorado (morto) da “burguesa” e grandes planos dos rostos de outros “burgueses” e “camponeses” que, ora seríssimos, ora gargalhando, assistem à altercação. Rostos enquadrados num garrido décor donde sobressai o logótipo da marca “Esso” (também nesta palavra avultando, com relevância para o que a seguir apontamos, ou não fosse JLG um obsessivo da cine-grafia, dois “S”), combustível maldito de uns e outros rumo, apetece dizer, ao “acidente (solução) final” (segundos depois, ver-se-á outro cartaz da gasolineira expressamente com a palavra “FUEL”). Não é preciso dizer de que luta aqui se trata e JLG também não o diz; antes desdiz, desconstrói, enfim, des-monta. De facto, segundos antes de se ver o par “inter-classista” a discutir na rua, as seguintes inscrições vão aparecendo no mesmo plano: “SS” — “LUTTE SS” — “LA LUTTE DES CLASSES”. É uma sucessão (deliberadamente) rápida e que, num primeiro visionamento, pode escapar ao espectador; também se poderia tratar, de outro prisma, de uma sucessão relativamente aleatória, não terminasse esta sequência da forma que termina. Depois do conflito, o par dirige-se, pedindo por ajuda, ao casal, que o ignora e se põe novamente em marcha (desconsiderando o apelo cristão “Somos todos irmãos, como Marx disse!” exortado pelo camponês). Perante a indiferença, burguesa e camponês, aos gritos, vão insultando o casal, eis senão quando coincidem: “Judeus! Porcos Judeus!” — momento em que, lentamente, hesitantemente, vão colocando o braço um em volta do outro e abandonando, desolados, a rua. No abraço da serpente, burgueses e proletários, enfim, juntos (como juntos aparecerão agora no enquadramento de há pouco, na “faux-to-graphie” que JLG “dactilografa” na imagem): é na infâmia obscurantista, no criminoso preconceito, no derradeiro ódio, que uns e outros se reconciliam e assumem o inimigo comum (“Anti-semitas de todo o mundo, uni-vos!”). Logo, também um comum objectivo, o mesmíssimo que presidia à acção das... “SS” (Schutzstafel). Aquilo que se inicia como uma luta de classes termina, portanto, com essas “classes” unidas na luta contra os “porcos”: a luta das claSSes e a luta das SS entoadas, inesperadamente, a uma só voz. Tese (burguesia), antítese (proletariado), síntese (anti-semitismo): esta última, ela mesma, enquanto demonstração — ou nova-tese — de como os pressupostos da dialéctica são frágeis, de que ela, dialéctica, se revela insuficiente para analisar o fenómeno social.

Contra os que acusam JLG de esquematismo ou simplismo, o que esta sequência insinua é que a luta de classes, por si só, se constitui num instrumento de análise curto para compreender e interpretar o mundo, que muito mais pedra há a partir para além dessa rígida visão da realidade — nomeadamente, enraizados preconceitos e ressentimentos, ódios recalcados que não escolhem barricadas. Aqueles que se digladiam de morte num dado momento bem podem ser os mesmos que, alimentados com os ingredientes certos (falámos acima em gasolina, pois não nos esqueçamos do fogo que a turba de “homens normais” deita à delegacia no Fury de Fritz Lang), fumam o cachimbo da paz no instante seguinte e declaram guerra ao inimigo: o diferente, o estranho, o “outro”. Aquilo de que fala essa paradigmática des-montagem godardiana é também, por isso, do nosso mundo em 2018: um em que, erodidos os valores da vida em democracia, indivíduos outrora afastados pelas mais elementares razões de decência se reaproximam e, estrategicamente estimulados pelos abutres do costume, batalham juntos contra uma difusa e enublada ameaça comum (os políticos, as elites, os emigrantes, refugiados, muçulmanos, negros, índios, LGBT, etc.). Foi assim nos EUA, foi assim no Brasil e é, independentemente das mais que legítimas razões de fundo que urge discutir, aquilo que também corremos o risco de ver acontecer em França, Espanha, Portugal. Em Blue Collar (1978), Paul Schrader começava o filme com brancos e negros em amena cavaqueira, partilhando as agruras e os escapes da vida, para terminar depois num violento, fatal, frente-a-frente entre dois bons amigos que, até então apenas isso mesmo, se volvem agora em “white”, “nigger”, “polish”. Em off, a voz de Smokey, o bom gigante que, num aparente descuido fabril, havia sido estrategicamente morto para assegurar que tudo continua na mesma: “They pit the lifers against the new boy, the young against the old, the black against the white. Everything they do is to keep us in our place”. Vivemos tempos obscuros em que a esperança deve ser — tem de —, como se ouve em Livro de Imagem, ardente; que os saibamos derrotar a tempo de mais tarde podermos dizer, como JLG em Histoire(s) du cinéma, “Obscurité: Oh! Ma Lumière!”.

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