O testamento político do general Mattis

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O centro da questão não é uma divergência sobre a súbita retirada militar da Síria mas um desacordo de fundo sobre o cerne da política externa norte-americana. O general Jim Mattis, secretário da Defesa, deixa na sua concisa carta de demissão um testamento político: “A nossa fortaleza como nação está inextricavelmente ligada ao nosso excepcional e abrangente sistema de alianças e parcerias.” Era visto como o último garante de um mínimo de racionalidade dentro da Administração Trump.

Uma ordem internacional favorável aos interesses dos Estados Unidos deve ter como fundamento a coesão dos aliados. E uma das exigências é tratar os aliados com respeito — uma alusão à NATO — e recusar “a ambiguidade na abordagem daqueles países cujos interesses estratégicos estão crescentemente em tensão com os nossos”. Refere a China e a Rússia. Deixa implícito que os impulsos de Trump são uma ameaça à segurança americana.

Durante dois anos, o general tentou conter tais impulsos de um Presidente que gosta de fazer política externa ao sabor de tweets, com base no seu famoso instinto. Muitas vezes em vão, algumas vezes com sucesso. Por sua vez, o Presidente nunca gostou da falta de entusiasmo de Mattis pelas suas intuições. A relação acabou. Antes dele, Trump perdeu, entre outros, um secretário de Estado e dois conselheiros de Segurança Nacional. Repete-se uma fórmula quase gasta: “Sai da sala o último adulto.”

Assinala Jeffrey Goldberg, director na revista The Atlantic, que esta “extraordinária carta de demissão” tem uma dimensão mais funda. Diz respeito a princípios. “O Presidente que ele serve não compreende o valor dos aliados ou a imoralidade de os menosprezar e abandonar.” Com a precipitada decisão de retirar as tropas da Síria, “abandona ao extremismo e ao terror os seus aliados curdos”, que foram cruciais na batalha contra o Estado Islâmico. Deixa-os entregues à sua sorte, entre duas ameaças, a turca e a de Damasco. É uma cruel mensagem aos parceiros que confiam nos Estados Unidos.

Da Europa à Ásia

A Europa reage com “um misto de pânico, desorientação e frenéticos passos para limitar os estragos”, escreve Patrick Wintour, editor diplomático do The Guardian. O tom pode ser exagerado, mas toca na ferida: a demissão priva a Europa e a NATO do seu mais fiável interlocutor. Pior: “É um alarmante sinal da determinação de Trump em assumir pessoalmente a conduta da política externa.”

Carl Bildt, antigo primeiro-ministro sueco, escreve num tweet: “Manhã de alarme na Europa. Jim Mattis é o derradeiro laço forte entre as margens do Atlântico dentro da Administração Trump.” Florence Parly, ministra da Defesa francesa, considera precipitada a retirada da Síria porque o Estado Islâmico ainda não foi aniquilado. Emmanuel Macron afirma que a retirada americana não afecta o envolvimento francês.

Há inquietação na Ásia. “A partida de Mattis deixará muitos parceiros e aliados na Ásia com o sentimento de que desaparece o mais importante símbolo de continuidade na política externa americana em relação à era pré-Trump”, declara o analista indiano Ankit Panda. Na Austrália, fala-se na necessidade de o país assumir a sua própria defesa. “Há um grande potencial de volatilidade nas alianças dos EUA”, prevê o analista americano Van Jackson. “O substituto vai ser provavelmente alguém na linha de Trump.”

Quanto ao Médio Oriente, resume Philip Gordon, do Council on Foreign Relations: “A súbita partida das tropas americanas da Síria exacerbará a instabilidade regional.”

Jim Mattis, o “ultimo adulto”, não suspeitaria há dois anos de quão indispensável viria a ser.

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