Só 38% dos médicos formados no Algarve ficaram na região

Começou por ser polémico, mas hoje é considerado pela Ordem “um curso igual aos outros”. Em dez anos, a Universidade do Algarve formou 200 médicos . Estas são algumas das suas histórias.

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Professora Alexandra Binnie numa das aulas do mestrado da Universidade do Algarve NUNO FERREIRA MONTEIRO
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Nuno Mourão: “Somos uma nova geração de médicos” NUNO FERREIRA MONTEIRO
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Alexandre Teixeira: “Só conhecia o Algarve de passar férias” NUNO FERREIRA MONTEIRO

Já há 200 diplomados pela Universidade do Algarve (Ualg) com o Mestrado Integrado de Medicina. Mas apenas 38% ficaram na região a fazer a especialidade. “Sempre me fez confusão como é que o Algarve não consegue atrair médicos”, afirmou o primeiro-ministro, António Costa, há ano e meio, quando foi criado o Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA). Para o concurso de 71 vagas, aberto em Março e Junho, o CHUA apenas conseguiu atrair 25 candidatos.

Os primeiros especialistas, oriundos do Mestrado Integrado de Medicina da Ualg, saem a meio do próximo ano, quando se celebram os dez anos desde a sua abertura. O curso tem condições especiais de acesso. Só os candidatos detentores de uma habilitação mínima — o grau de licenciatura numa área das ciências da saúde, ciências exactas ou ciências da natureza —, podem concorrer. O mestrado tem quatro anos (seguem-se o ano comum e uma especialidade de quatro a seis anos de formação).

Alexandre Teixeira, doutorado em biologia molecular pela Universidade de Oxford (Inglaterra,) é dos novos estudantes do Algarve vindos do estrangeiro. “Só conhecia o Algarve de passar férias, mas vim para ficar.” Tem 46 anos e frequenta o 3.º ano do mestrado. “Aqui sou aluno”, sublinha, para que não haja confusão de papéis. Mas noutras circunstâncias já podia ser professor. Quem já passou para o outro lado da bancada foi Nuno Mourão, 35 anos, médico nos Cuidados Intensivos do Hospital de Faro, a fazer o 4.º ano de especialidade em Medicina Interna — Cuidados Intensivos. “Agora, sou regente da cadeira de ciências básicas e clínicas”, adianta.

De início, a Ordem dos Médicos (OM) e outros sectores da saúde colocaram algumas reservas ao modelo de ensino deste mestrado, baseado em casos clínicos (Problem Based Learning). Teoria e experiência deram as mãos e o resultado foi positivo. O médico, nascido no Alto Douro, afirma: “Somos uma nova geração de médicos, que quer ajudar a mudar as coisas”, no sentido de dotar a região dos recursos humanos de que precisa na área da saúde. O responsável distrital pela Ordem dos Médicos (OM), Ulisses de Brito, pneumologista no Hospital de Faro, acha que as dúvidas levantadas pela OM sobre a qualidade da formação — mais prática do que teórica — estão ultrapassadas. “É um curso igual aos outros.”

Sandra Silva pertence à primeira leva dos 12 clínicos que vão terminar a especialidade em Medicina Geral e Familiar (MGF), em 2019. Para quem vinha de uma formação clássica — já possuía uma licenciatura em ciências farmacêuticas, e dois anos de experiência profissional —, sentiu-se atraída “pelo aspecto prático do curso”. Ao fim da segunda semana de aulas, os alunos começam logo a rodar pelos centros de saúde, e depois fazem estágios, orientados por um tutor, no conjunto diverso das várias especialidades, explica. “Se puder, vou continuar no Algarve”, diz a jovem médica, de Lamego, que trabalha actualmente no Centro de Saúde de Olhão.   

Nuno Mourão não pensava sair do Porto, onde se licenciou em cardio-pneumologia. “É curioso, vim para cá estudar a partir de uma notícia que li no PÚBLICO sobre este método de ensino, baseado mais no raciocínio clínico do que na memorização.” Na altura, fazia investigação e trabalhava como técnico de diagnóstico e terapêutica. “A urgência é a minha paixão”, enfatiza. A adrenalina “sem stress” corre-lhe nas veias quando está de serviço no INEM, prossegue. As coisas acontecem de forma inesperada — de um momento para o outro, salta para o helicóptero, ou arranca “a abrir” na viatura do 112.

Não teve dificuldades em encontrar vaga no Hospital de Faro, porque a unidade possui idoneidade formativa nesta especialidade. O colega Alberto Correia, interno de neuro-radiologia no Hospital Santa Maria, não teve a mesma sorte. “Vim para Lisboa, porque não há esta especialidade no Algarve”, conta. Natural de Póvoa de Varzim, manifesta-se disposto a regressar a Faro, quando abrir vaga. “Fiquei com uma forte ligação sentimental à região, e sinto o dever de dar algo em troca do que recebi.”

A presidente do conselho de administração do CHUA, Ana Paula Gonçalves, responde: “Estamos a trabalhar para fixar médicos, nesta e noutras especialidades.” A ortopedia, por exemplo, é uma das áreas onde a OM retirou capacidade formativa ao Hospital de Faro, por falta de recursos humanos. Já a neurocirurgia, adquiriu essa competência. E a cirurgia recuperou — tinha deixado de poder formar médicos nessa especialidade havia cerca de três anos.

A directora do mestrado, Isabel Palmeirim, afirma: “Muitos médicos [formados na Ualg] não teriam saído se o CHUA tivesse capacidade formativa em todas as especialidades.”

Falta um novo hospital

Apesar do bom clima da região, os grandes centros urbanos fora do Algarve continuam a reunir as preferências dos profissionais da medicina. Das duas centenas de clínicos já formados na Ualg, ficaram na região apenas 76 (38%) a fazer a especialidade. A região de Lisboa e Vale do Tejo colocou 70 (35%) e os restantes deslocaram-se para outros pontos do país. Seis emigraram. “É necessário alargar as competências formativas no CHUA, e criar perspectivas de carreiras ligadas às ciências biomédicas e medicina”, diz Isabel Palmeirim. A construção do novo Hospital Central, que já teve direito ao lançamento simbólico de uma “primeira pedra” no Governo de José Sócrates, desapareceu da lista das prioridades de construção de novas unidades de saúde para 2019. A direcção do PS-Algarve, entretanto, renovou a promessa de que vai haver obra na próxima legislatura.

A criação do CHUA em Julho de 2017 — integrando os hospitais de Faro, do Barlavento (Portimão) e Lagos, mais o Centro de Medicina e Reabilitação Física do Sul — foi justificada pela necessidade de promover a articulação entre a comunidade científica e o corpo clínico. Isabel Palmeirim realça a “boa colaboração” que se estabeleceu entre as instituições para valorizar um curso, que chegou a ser visto, de forma crítica, como uma forma de promover a ascensão de enfermeiros a médicos.

Dos reconhecimentos conquistados no estrangeiro, destaca a vitória da equipa de cinco alunos, coordenada pela docente Alexandra Binnie, que venceu a maior competição europeia entre estudantes de medicina numa simulação médica de urgência, organizada pela Society in Europe for Simulation Applied to Medicine, em Bilbau.

O gato atropelado

Alexandre Teixeira é um caso típico dos bolseiros precários, trabalhou como investigador durante 15 anos. Após o doutoramento em Londres, co-assinou um artigo publicado na prestigiada revista Nature, trabalhou e deu aulas no Instituto de Medicina Molecular e no Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, em Lisboa. De repente, aos 43 anos, viu-se desempregado, casado e com filhos. Decidiu concorrer ao curso de medicina, em Faro.

“Informei-me e achei que poderia ser interessante.” Tentou a sorte e foi seleccionado. De entre as 12 entrevistas destinadas a determinar o perfil do candidato, destaca uma cena onde entrava um gato. De forma inesperada, foi colocado perante a seguinte situação: saiu de casa para a entrevista do emprego que iria mudar a sua vida. Teve um azar — atropelou um gato. O animal, por acaso, pertencia à sua vizinha. A representar o papel da vizinha, conta, encontrou uma actriz. “Não foi fácil explicar o sucedido, com a mulher a chorar compulsivamente”, recorda. Manter a calma foi a chave do êxito no teste.

Na vida real, explica Isabel Palmeirim, os médicos são submetidos a muitas situações de stress. E têm de estar preparados para saber comunicar.

Na aula da quinta-feira passada, a médica Alexandra Binnie colocou os alunos à prova. Sobre a maca encontrava-se uma mulher (um manequim), de 71 anos, a queixar-se com dores no abdómen. O equipamento médico permite ver a frequência cardíaca, respiratória, o ritmo cardíaco, e avaliar outros sinais biológicos. Mas não diz tudo. Para tornar a situação mais complicada, a professora fez ela própria de doente. Às dores abdominais, chamava “facadas na barriga”, e quanto interpelada sobre o que teria acontecido para ir parar às urgências, respondia: “Não sei, não lembro...”

Os alunos, perplexos, trocavam opiniões entre eles e, mentalmente, faziam a revisão da matéria dada. Seguia-se o internamento e exames complementares. Se fosse a sério, no Hospital de Faro haveria um problema adicional para resolver — falta de camas para o internamento. Esta unidade, inaugurada há 40 anos, foi projectada para uma  capacidade de 350 camas. Com os enxertos arquitectónicos que tem sofrido, fez esticar o espaço para chegar às 500. A sobreocupação obrigou a colocar seis em lugares onde deveriam estar quatro.

O coordenador do Centro de Referência do Cancro do Reto (Gastrenterologia), Paulo Caldeira, é um dos médicos da equipa sénior que defendem a necessidade da construção de um novo hospital central, lembrando que o Algarve é a “região do país com menor número de camas por habitante”. Tomando como referência uma população de 442.000 habitantes e uma média de camas hospitalares de 330 por 100.000, deveria ter no mínimo 1350 camas, explica. Ora, o CHUA tem cerca de 950. “Essa é uma velha luta, sem resposta por parte dos poderes públicos”, sublinha o representante da Ordem dos Médicos. A transferência de conhecimento produzido na Ualg, observa Ulisses de Brito, “torna ainda mais urgente a necessidade de construir um novo hospital”.

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