A disponibilização de dados sobre o sarampo é uma estratégia essencial na luta contra a doença

Não se encaram nem se resolvem ameaças de saúde pública ficando “em pânico”, “fechando os olhos” e mantendo os outros “às escuras”. As epidemias de sarampo aí estão, indiferentes às leituras do ISN.

Para além da tese de doutoramento e de tudo o que já publiquei sobre sarampo em revistas científicas, queria chamar à atenção para três artigos publicados (com os meus co-autores) nas revistas científicas Vaccine e Epidemiology and Infection, nos anos de 2015 e 2016. Revelavam que algo de anormal se estava a passar no que se refere à imunidade contra o sarampo. Levantei objeções (fundamentadas) relativamente a decisões sobre o calendário vacinal contra o sarampo, tomadas nos últimos anos, nomeadamente a idade da 1.ª dose. Nos artigos era exposta a preocupação relativamente ao sarampo enquanto potencial problema de saúde pública e eram apontados caminhos para futuras soluções. Infelizmente,  as epidemias apareceram mesmo! Publiquei na Acta Médica Portuguesa uma carta ao editor com o título “Quando Judas teve sarampo”. O título foi inspirado por uma canção dos Gaiteiros de Lisboa sobre as crendices populares se doenças infeciosas. As publicações dirigiam-se à comunidade científica e às autoridades de saúde, e não ao público em geral. Não o fiz por qualquer receio de dizer a verdade ou de “criar pânico”, mas para não interferir com eventuais estratégias de comunicação com o grande público, das autoridades de saúde.

Entretanto, parece que a estratégia de comunicação do Ministério da Saúde (MS) passa pela ocultação de dados à população e por dificultar o acesso aos mesmos por médicos e investigadores. Fiquei muito preocupado após a leitura de uma notícia publicada no PÚBLICO (online) do dia 5 de dezembro de 2018 (com o título "Taxas de vacinação contra o sarampo não garantem imunidade em Lisboa e no Algarve"). A notícia refere a existência de “bolsas de não-vacinação” e mostra um mapa de Portugal bem preocupante em termos de vacinação contra o sarampo. Mas a DGS não tinha garantido publicamente que a cobertura vacinal contra o sarampo em Portugal era muito boa e não havia razões para alarme? A notícia refere ainda que um membro da equipa de coordenação do Programa Nacional de Vacinação (PNV) afirmou que “a tutela sabia onde estavam estas bolsas de não-vacinação, mas a especialista preferiu então não especificar dados para não lançar o pânico…”. Isto é particularmente estranho. Trata-se da ocultação deliberada à população e à comunidade médica e científica, de dados de uma decisiva importância. O argumento do pânico é indesculpável. Esta é uma situação em que os profissionais e a população devem ser mobilizados para ações preventivas (neste caso vacinar). Não há que ter pânico. Há que agir individualmente e em grupo para prevenir problemas futuros.

Parece emergir um padrão repetido na (não) divulgação de dados. Semelhante à estratégia usada sobre dados de cobertura vacinal foi a tão adiada a tardia divulgação dos resultados do “Inquérito Serológico Nacional 2015-2016 - Doenças Evitáveis por Vacinação” (ISN). A sua “divulgação” teve aspetos deveras surpreendentes e bizarros. A sua formal apresentação pública esteve marcada para o dia 10 de maio de 2017, no Instituto Nacional de Saúde, com um programa divulgado e publicamente acessível na Internet. Fui convidado para comentar os dados do ISN nessa apresentação mas não cheguei a ter acesso aos mesmos. Subitamente, a sessão de divulgação foi cancelada e, depois de hesitações várias, marcada outra para o dia 31 de outubro de 2017. Fui informado que tinha sido “desconvidado” “… pela decisão superior de declinar o referido convite”. Bizarro não será certamente a melhor palavra para designar estes procedimentos. Também foi uma questão de não lançar o pânico? Posteriormente tive enormes dificuldades em aceder na Internet aos resultados do dito ISN. Quando finalmente li o relatório do ISN, verifiquei que este revela uma preocupante descida da imunidade de grupo contra o sarampo, completamente consistente com os artigos atrás mencionados. Não se encaram nem se resolvem ameaças de saúde pública ficando “em pânico”, “fechando os olhos” e mantendo os outros “às escuras”. As epidemias de sarampo aí estão, indiferentes às leituras do ISN.

Na mesma linha, permito-me perguntar o que se passa com os dados sobre eficácia vacinal da epidemia ocorrida no Hospital de Santo António no Porto e de outras epidemias de sarampo? Quem faculta o acesso aos dados e com que critérios? O acesso transparente aos dados, para sua análise, pela comunidade científica portuguesa, seria da maior importância. Parafraseando uma personagem do filme And the Band Played On, deveríamos ser “todos contra o vírus”!

Os dados na posse do MS não devem sujeitar-se à habitual competição egoísta pelos direitos de autor. Esses dados pertencem aos cidadãos da República Portuguesa e devem ser usados para produzir conhecimento científico útil às estratégias de Saúde Pública.

Não escrevo este texto com qualquer gosto. É uma situação desagradável que me faz sair da confortável posição de “lavo daí as minhas mãos”. Escrever estas linhas foi um imperativo ético. Mas os muitos anos de trabalho e de idade, e os antecedentes atrás referidos, fazem-me suspeitar que as consequências deste texto serão desagradáveis para mim. No momento de hesitação sobre se haveria de publicar ou não este texto, passei pelo átrio da instituição onde trabalho, o ICBAS (Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar) e li os textos/citações que estão junto aos bustos de dois dos nossos patronos (Corino de Andrade e Abel Salazar) e que transcrevo:

“A saúde pública é um capital da Nação, que esta tem o dever de vigiar e auxiliar, com o mesmo carinho e zelo com que protege todas as suas outras riquezas” (Corino de Andrade)

“Não tenho ambições políticas nem jamais as terei, como jamais as tive mas tenho deveres sociais a cumprir, que cumprirei conforme os ditames da ótica científica” (Abel Salazar)

Não preciso de detalhar aqui sobre o caráter de Abel Salazar e as perseguições a que foi sujeito. Não teve medo. Tenho o dever de honrar tais patronos e o seu exemplo e de servir os interesses da saúde pública dos portugueses.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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