Novas provas de que a proteína que forma placas no cérebro de doentes com Alzheimer é transmissível

Confirmou-se que algumas amostras de hormonas de crescimento provenientes de cadáveres e que foram usadas em tratamentos em meados dos anos 80 continham proteína beta-amilóide. Além disso, viu-se que essas amostras potenciam a acumulação dessa proteína no cérebro de ratinhos.

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Cérebro humano fotografado no teatro anatómico do Hospital de Santa Maria, em Lisboa Rui Gaudêncio

Há mais de três anos, um grupo de cientistas sugeriu que um conjunto de hormonas de crescimento provenientes de cadáveres e que foram usadas para tratar pessoas com a doença de Creutzfeld-Jakob (DCJ) seria uma fonte de transmissão da proteína beta-amilóide – que, por exemplo, forma placas no cérebro de doentes com Alzheimer. Agora, essa equipa anuncia na revista científica Nature que esse conjunto de hormonas continha essa proteína e que pode transmitir a patologia da beta-amilóide a ratinhos. No entanto, os cientistas destacam que os resultados deste estudo não sugerem que a doença de Alzheimer seja transmissível.

“Já no século XXI, surgiu uma nova linha de investigação que levanta a hipótese de as proteínas da doença de Alzheimer serem infecciosas”, lê-se no livro Por que é que as Bailarinas Não Ficam com a Cabeça a Andar à Roda? (Esfera dos Livros, 2017) de Filomena Naves e Teresa Firmino. Ou seja, surgiu a hipótese de que a beta-amilóide podia ser infecciosa e contaminar outras proteínas, tal como acontece com os priões (formas anómalas de proteínas normalmente produzidas pelo cérebro de mamíferos), que causam encefalopatias espongiformes, nomeadamente a DCJ nos humanos. Nesta doença os priões vão multiplicar-se no cérebro transformando-o numa esponja.

Em 2012, Stanley Prusiner – que ganhou o Prémio Nobel da Medicina de 1997 pela descoberta dos priões – sugeriu mesmo que os depósitos da proteína beta-amilóide seriam priões, ou seja, era infecciosa e causava Alzheimer. Ao injectarem-se agregados de beta-amilóide no cérebro de ratinhos, verificou-se que algum tempo depois esses depósitos aumentavam e que se tinham espalhado por outras zonas do cérebro.

No mesmo ano, a equipa de Martin Hallbeck (da Universidade de Linköping, na Suécia) revelou que conseguiu observar – através de neurónios coloridos – que a beta-amilóide se transmitia de neurónio para neurónio como se fosse uma infecção. “Mostrámos que as únicas células que ficaram doentes são as que receberam a beta-amilóide, o que explica por que é que apenas certas áreas do cérebro ficam doentes. Porém, não há qualquer indicação de que a doença de Alzheimer é contagiosa entre pessoas”, dizia na altura o cientista ao PÚBLICO.

Três anos depois – em 2015 – a equipa de John Collinge, do University College de Londres, anunciou que tinha detectado a presença da patologia da beta-amilóide (uma característica da angiopatia amilóide cerebral e da doença de Alzheimer) no cérebro de quatro doentes com DCJ. Estas pessoas tinham recebido injecções de hormonas de crescimento provenientes de cadáveres contaminadas com priões. Esses doentes morreram e, embora alguns manifestassem sinais de angiopatia amilóide cerebral, nenhum deles preenchia todos os critérios que levam à doença de Alzheimer. Na altura, suspeitou-se que poderiam ter desenvolvido a patologia da beta-amilóide devido ao tal tratamento, mas seria necessária mais investigação.

Como tal, agora a equipa de John Collinge obteve as amostras desse conjunto de hormonas de crescimento. Analisou-as bioquimicamente para saber se tinham beta-amilóide e tau (outra proteína envolvida na formação de estruturas cilíndricas nos neurónios na doença de Alzheimer). Resultado: confirmou-se a presença de ambas as proteínas nalgumas amostras.

Por fim, a equipa quis saber se a beta-amilóide nessas amostras tinha a capacidade de transmitir a patologia da beta-amilóide. Para tal, injectaram-se amostras dessas hormonas de crescimento contaminadas no cérebro de ratinhos geneticamente modificados para terem os primeiros sinais da acumulação de beta-amilóide ao fim de seis meses. Por volta dos 240 dias (oito meses) foram detectados depósitos de beta-amilóide, assim como sinais de angiopatia amilóide cerebral. Já nos ratinhos que não foram geneticamente modificados não se detectaram praticamente esses sinais.

Estes resultados demonstram que o conjunto original de hormonas de crescimento provenientes de cadáveres continha beta-amilóide e pode transmitir a patologia da beta-amilóide em ratinhos, assim como fornecem provas experimentais que apoiam a hipótese de que a patologia da beta-amilóide pode ser transmitida por humanos de forma iatrogénica [transmissão acidental através de um tratamento médico ou cirúrgico]”, escrevem os cientistas num comunicado sobre o trabalho. E adiantam ainda que estes resultados não sugerem que a doença de Alzheimer é contagiosa ou transmissível por transfusão sanguínea.

Pedida precaução

No artigo científico, ainda destacam: “Esta confirmação experimental tem implicações tanto para a prevenção como para o tratamento da doença de Alzheimer e deve motivar uma revisão do risco da transmissão iatrogénica da beta-amilóide através de procedimentos médicos e cirúrgicos há muito reconhecidos por porem em risco a transmissão acidental de priões.”

Num comentário ao estudo também na Nature, Tien-Phat Huynh e David Hotzman (ambos da Universidade de Washignton, nos EUA, e que não fizeram parte do trabalho) destacam a robustez do estudo. “Estes resultados fornecem uma forte prova de que a patologia da beta-amilóide anteriormente relatada em pessoas que morreram de DCJ depois de terem recebido hormonas de crescimento proveniente de cadáveres foi causada por esse mesmo tratamento.”

Outros cientistas, que também não participaram no trabalho, pedem precaução quanto aos resultados. “Não há razão no estudo para se recear a transmissão da doença de Alzheimer entre pessoas”, sublinha Tara Spires-Jones, da Universidade de Edimburgo (Reino Unido). E Diane Hanger, do King’s College de Londres, nota: “A relevância destes resultados para o desenvolvimento ou transmissão da doença de Alzheimer ainda é pouco claro, já que a patologia da tau não foi examinada neste estudo, logo os resultados devem ser interpretados com precaução.”

Por sua vez, David Reynolds, da organização Alzheimer’s Research UK, também se mostra cauteloso quanto à ligação deste estudo com a transmissão de Alzheimer. “Embora seja cientificamente interessante, esta investigação focou-se num pequeno número de pessoas que tinha sido sujeito a um procedimento neurocirúrgico muito específico, sendo o último realizado em meados dos anos 80.” Entretanto, já muito se descobriu sobre os priões e surgiram novas orientações para a esterilização e uso de equipamento cirúrgico, frisa David Reynolds.

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