Poderá a doença de Alzheimer ser transmissível em certas condições?

Análise de cérebros de pessoas tratadas com hormona de crescimento derivada de cadáveres – e que morreram da doença de Creutzfeld-Jakob – levanta questões acerca da transmissibilidade da doença da Alzheimer entre seres humanos.

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O estudo poderá ajudar a perceber melhor os mecanismos do desenvolvimento da doença de Alzheimer Daniel Rocha

Um pequeno estudo, realizado por cientistas britânicos, sugere que, em circunstâncias extremamente invulgares, certas alterações cerebrais características da doença de Alzheimer poderão ter sido transmitidas entre humanos, há várias décadas, através da injecção de extractos de tecidos, colhidos em cadáveres, a pessoas com deficiências da hormona de crescimento. Os resultados foram publicados esta quarta-feira na revista Nature.

A ideia não é totalmente descabida. Existe de facto uma outra doença, muito bem estudada, que apresenta precisamente essa capacidade: a doença de Creutzfeld-Jakob (DCJ), em que uma proteína anormal, chamada prião, se multiplica no cérebro das suas vítimas transformando-o literalmente numa esponja. Pertence à categoria das encefalites espongiformes – tal como a tristemente célebre doença das vacas loucas, que atingiu proporções epidémicas na Europa nos anos 1980. Recorde-se aliás que a doença bovina deu origem, por transmissão através da ingestão de carne infectada, a uma nova forma de DCJ no ser humano.

Seja como for, uma outra forma conhecida de DCJ deve-se justamente à transmissão de priões aquando de tratamentos realizados, entre 1958 e 1985, em crianças que não cresciam normalmente devido a deficiências da hormona de crescimento. Naquela altura não havia hormonas sintéticas e, para obter extractos da hormona, colhia-se a glândula pituitária de milhares de cadáveres.

Cerca de 30.000 pessoas receberam este tratamento no mundo ao longo desses anos. Mas quando começaram a aparecer casos de DCJ entre elas, o tratamento foi abandonado.

Como salientou John Collinge, do University College de Londres e um dos líderes do estudo agora publicado, durante uma teleconferência de imprensa que precedeu a publicação do trabalho, das quase 2000 pessoas que receberam o tratamento no Reino Unido 77 já morreram com DCJ. No mundo inteiro, estima-se que sejam cerca de 450 e, em certos países, a proporção atinge os 6,3% das pessoas tratadas. A título comparativo, o número de casos de DCJ na população geral é de cerca de um por milhão de habitantes por ano.

O que motivou de facto o presente estudo foi a DCJ e não a doença de Alzheimer – e a descoberta agora anunciada foi acidental. “Fizemos autópsias aos cérebros de oito vítimas do tratamento com hormona de crescimento e ficámos muito surpreendidos ao vermos que alguns apresentavam extensos depósitos de proteína beta-amilóide”, explicou Collinge. A beta-amilóide é uma proteína anormal que forma placas no cérebro dos doentes com Alzheimer. “Alguns tinham placas no cérebro, outros depósitos da proteína anormal à volta dos vasos sanguíneos cerebrais. Só um deles não apresentava este tipo de alteração.”

Como os doentes eram muito novos na altura da morte (tinham entre 36 e 51 anos), os autores começaram por descartar as razões mais óbvias para a presença dessas placas no seu cérebro, tais como a predisposição genética à Alzheimer precoce. Não encontraram nenhuma. Também compararam os cérebros de 116 vítimas de DCJ que nunca tinham recebido hormona de crescimento e, mesmo nas pessoas dez anos mais velhas, não encontraram qualquer sinal de patologia associada à proteína beta-amilóide.

Num artigo de comentário publicado na mesma edição da Nature, Mathias Jucker (Universidade de Tubingen, Alemanha) e Lary Walker (da Universidade Emory, EUA) resumem bem a conclusão – muito prudente – que se impõe à luz dos resultados: foram descobertos “indícios de que alterações cerebrais características da Alzheimer foram transmitidas entre humanos [e que] a transmissão ocorreu provavelmente através da injecção de hormona de crescimento humana derivada de cadáveres”.

Se já se sabia que era possível induzir a formação de depósitos de beta-amilóide injectando “sementes” desta proteína (minúsculos agregados) no abdómen de ratinhos, esta é a primeira vez que o fenómeno é observado no ser humano.

Contudo, como explicou ainda Collinge, isso não significa que, se não tivessem morrido com DCJ, aqueles doentes teriam um dia desenvolvido Alzheimer. Aliás, a equipa não detectou, nos cérebros dessas pessoas, um outro ingrediente essencial da doença: os “emaranhados fibrilares”, compostos de uma outra proteína, chamada tau.

Mas apesar de os autores – e muitos peritos a cujas reacções a imprensa internacional teve acesso antes da publicação dos resultados – enfatizarem que este estudo é puramente observacional e portanto não demonstra de maneira alguma que a doença de Alzheimer seja “contagiosa”, as conclusões não deixaram de suscitar, na já referida teleconferência, questões acerca da potencial transmissibilidade da doença de Alzheimer.

Em particular, o que dizer do risco associado a transplantes ou transfusões sanguíneas, neurocirurgias ou mesmo a certas operações dentárias? Tal como já aconteceu em raros casos com a DCJ, pode-se especular que seria possível transmitir acidentalmente as ditas “sementes” de beta-amilóide durante certas intervenções médicas comuns, que mais tarde poderiam levar ao desenvolvimento da doença de Alzheimer?

“Por enquanto, não há quaisquer dados epidemiológicos que sugiram que a beta-amilóide possa ser transmitida desta forma – e recomendo a todos que não cancelem uma cirurgia” por causa destes resultados, disse Collinge.

O que sim é preciso fazer, acrescentou, é conseguir perceber se as doenças de Alzheimer ou de Parkinson não serão mais semelhantes do que se pensava com doenças provocadas por priões como a DCJ, onde uma proteína anormal “cria adeptos”, levando as suas congéneres normais, naturalmente presentes no cérebro humano, a tornarem-se anormais.

“Por enquanto, nem sequer sabemos o que são exactamente as 'sementes' de beta-amilóide”, frisou. Daí que não seja possível ainda desenvolver ferramentas para estudar o seu comportamento e fazer "biologia quantitativa". "Quando soubermos isso, é provável que os métodos que desenvolvemos para estudar os priões possam ser aplicados.”  

Quanto aos cerca de 1700 britânicos ainda vivos que receberam o tratamento hormonal há mais de 30 anos – e às dezenas de milhares no resto do mundo –, Collinge lamentou o facto de essas pessoas virem agora a inteirar-se pelos media deste novo risco potencial para a sua saúde. “Foi há tanto tempo, é difícil localizá-los. Mas estamos a fazer os possíveis para aconselhar e ajudar os que se apresentarem no nosso hospital.”

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