Uma declaração de amor aos funcionários públicos

É por prezá-los que não gosto de ver o seu papel abastardado por gente que não está à altura do seu dever.

A minha caixa de correio está cheia de gente convencida de que nutro um profundo desprezo pelos funcionários públicos, e que sou um neoliberal fanático desejoso de privatizar o país inteiro. Acreditam que perdi o contacto com o mundo real, que sou um betinho privilegiado, com seguro de saúde e filhos em escolas privadas. Não poderiam estar mais errados.

Permitam-se – só desta vez – aborrecer-vos um pouco com a minha biografia. Sou filho de dois funcionários públicos de Portalegre, que trabalharam toda a vida nas Finanças. Estudei sempre em escolas públicas, e tenho uma especial dívida de gratidão para com a secundária Mouzinho da Silveira, sobretudo pela forma como me acolheu em 1994, quando, já aluno universitário, decidi trocar Engenharia Química pelas Ciências da Comunicação e voltar atrás, ao 12.º ano, para estudar Filosofia.

Como tinha tido uma excelente professora no 10.º e no 11.º anos, pedi para assistir às suas aulas de 12.º, de forma a preparar-me para o exame específico que me permitiria entrar num curso de Letras. Na altura, não havia qualquer enquadramento legal para a minha presença ali. Mas a direcção da Mouzinho da Silveira permitiu que assistisse às aulas de Filosofia, e a minha professora corrigiu cada um dos meus testes (que eu não tinha direito a fazer) e permitiu que participasse em cada uma das suas aulas (onde não tinha direito a estar) como se fosse um aluno normal. Jamais esquecerei essa generosidade – e ela dificilmente teria sido possível numa escola privada.

Mais tarde, entrei para a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, uma instituição pública. Antes, tinha frequentado o Instituto Superior Técnico, outra instituição pública. Os meus quatro filhos frequentam a escola pública, entre o 1.º e o 9.º anos. A minha filha mais velha começa agora a cobrar-me por não andar numa escola privada, porque está a tomar consciência de que a qualidade no ensino público não é tão elevada quanto ela gostaria. Mas é a vida. Para além da questão financeira, eu e a minha mulher nunca quisemos que os miúdos vivessem em bolhas excessivamente privilegiadas.

A minha mulher, já agora, é médica no Instituto Português de Oncologia. Nunca trabalhou no sector privado, e não está interessada em fazê-lo (apesar da minha insistência ocasional). Ela acredita que a sua profissão só pode estar ao serviço de todos se for praticada em hospitais públicos. Não se imagina a cobrar dinheiro para curar quem quer que seja. É daquele tipo de médico que no Natal chega a casa com coelhos esfolados (o PAN que me perdoe), caixas de chocolates e quilos de abóboras, oferecidos pelos doentes. Acho isso muito bonito. Um dia destes eu devia emprestar-lhe esta página para vocês saberem o que ela pensa do actual estado do SNS e das cativações de Centeno. Ainda assim, nunca na vida lhe passou pela cabeça fazer greve, porque ela sabe que quem pagaria a factura seriam os doentes. E, para um doente oncológico, cada dia de atraso num tratamento conta muito.

Esta conversa poderia derivar ainda para o ramo familiar da minha mulher, onde é quase tudo (ou foi) professor. Não vale a pena. Penso que já deu para perceber a ideia. Eu nunca desprezei os funcionários públicos – como poderia? Pelo contrário. Prezo-os muito. E é por prezá-los que não gosto de ver o seu papel abastardado por gente que não está à altura do seu dever, e que parece ter perdido a noção do que significa servir a causa pública e os cidadãos deste país.

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