Inspecção de Finanças deixou na gaveta auditoria à Cruz Vermelha

Ministério Público fez buscas à Inspecção de Finanças. Cruz Vermelha não apresentava contas ao fisco. Relatório foi mantido na gaveta durante dois anos. Tribunal de Contas diz que só recebeu informação "marginal" há dias, mas da Inspecção da Defesa Nacional.

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A Inspecção de Finanças é liderada desde 2015 por Vítor Braz Nuno Ferreira Santos

O topo da hierarquia da Inspecção-Geral de Finanças (IGF) deixou na gaveta durante mais de dois anos uma auditoria que apontava para graves deficiências na gestão da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP), a começar pelo facto de a instituição humanitária não estar na altura a apresentar declarações a entidades externas, incluindo o fisco.

A Inspecção de Finanças, liderada desde 2015 por Vítor Braz, está agora sob os holofotes da Polícia Judiciária e do Ministério Público, numa operação em que o Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa tenta apurar a forma como acções de fiscalização do Estado lesaram os interesses financeiros públicos. No inquérito estão a ser investigados crimes de corrupção passiva, peculato e abuso de poder, imputáveis indiciariamente, a “altos responsáveis de serviços centrais da Administração Pública do Estado”.

Ao longo da manhã e da tarde de terça-feira, equipas da Polícia Judiciária (PJ) e do Ministério Público fizeram buscas na sede da IGF e na Cruz Vermelha, em Lisboa, a recolher prova para apurar as responsabilidades individuais “de dirigentes da administração pública da área de serviços com a missão designadamente do controlo financeiro e fiscal do Estado”.

A IGF concluiu em Outubro de 2016 uma auditoria ao funcionamento da Cruz Vermelha e às subvenções que há décadas lhe são pagas pelo Estado — cruciais para a almofada financeira da instituição —, mas o documento (centrado nos anos de 2013, 2014 e 2015) não viu a luz do dia até há pouco tempo.

O PÚBLICO sabe que o relatório propunha que as “graves deficiências” fossem dadas a conhecer não apenas a quem tutela a IGF (o ministro das Finanças), mas também ao Tribunal de Contas e à Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, mas o documento acabou por ficar na gaveta ao longo de dois anos.

Questionado na terça-feira se recebeu algum relatório de auditoria elaborado pela IGF em 2016 em que a CVP aparece como entidade auditada, o Tribunal de Contas (TdC) confirmou inicialmente ter ali entrado um relatório “sobre o tema” há pouco dias: na quinta-feira da semana passada, a 6 de Dezembro, quando a investigação do Ministério Público já estava em marcha há muito. No entanto, já nesta quarta-feira, o tribunal esclareceu o PÚBLICO que a informação recebida sobre a Cruz Vermelha foi remetida por outra entidade, a Inspecção-Geral da Defesa Nacional (IGDN), e que “o objecto desse relatório é marginal em relação ao tema apresentado” nesta notícia pelo PÚBLICO.

Poder centralizado

A CVP está sediada em Lisboa e espalhada por todo o país, com 148 delegações locais, dez centros humanitários e oito organismos autónomos.

Sendo uma “pessoa colectiva de direito privado e de utilidade pública administrativa, sem fins lucrativos”, a CVP detém três entidades com fins lucrativos, das quais é na prática a “empresa-mãe”: controla a maioria do capital (54,97%) da Sociedade Gestora do Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa (estando o restante capital nas mãos do Estado através da Parpública), detém a Parfisi — Gabinete de Reabilitação Física e, com a Santa Casa da Misericórdia de Estremoz, a Clínica Social Rainha Santa Isabel.

A auditoria detectou que os recursos financeiros estavam a ser geridos de forma descentralizada, fazendo na prática com que existissem naquela altura várias gestões financeiras. Mas não foi a única falha encontrada. Além da falta de fiabilidade das contas, foi descoberto que a CVP estava a aprová-las com atraso. Por exemplo, as de 2013 foram aprovadas com um atraso de dez meses, as de 2014 com um atraso de 14 meses.

Ao Ministro da Defesa Nacional cabe homologar os relatórios e contas anuais da CVP, mas quando a IGF realizou a auditoria descobriu que isso não estava a acontecer. Outro facto apurado foi o facto de a Cruz Vermelha não estar na altura a apresentar à Autoridade Tributária a Informação Empresarial Simplificada (IES) e a Declaração Modelo 22.

Um ponto sensível da auditoria tem a ver com as subvenções que a instituição recebe do Estado. E são várias as entidades que concedem apoios: desde a Secretaria-Geral do Ministério da Defesa ao Instituto da Segurança Social, passando pelo INEM, Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) e Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGESTE).

O documento alertava para a concentração excessiva de poderes do presidente nacional da CVP, por ter nas suas mãos poderes considerados incompatíveis entre si (além da gestão, poder determinar de forma directa ou indirecta a composição da assembleia-geral).

O relatório propunha mesmo que a CVP avançasse com uma alteração dos estatutos e pusesse em prática uma nova organização estrutural e uma nova forma de gestão financeira e contabilística, para acatar os problemas identificados.

A sede da CVP foi um dos locais onde passaram ontem a PJ e o Ministério Público. No terreno estiveram seis magistrados, 50 inspectores da PJ, peritos informáticos e financeiros, e quatro auditores.

O Ministério Público está a investigar neste inquérito a prática de “actos ilícitos em procedimentos concursais, em acções de fiscalização que lesaram gravemente o Estado nos seus interesses financeiros -, tendo como contrapartidas benefícios individuais dos visados.”

Ao PÚBLICO, o gabinete de imprensa do ministro das Finanças não quis comentar as buscas, o mesmo tendo feito o principal responsável pela Cruz Vermelha Portuguesa, Francisco George, em funções há cerca de um ano. Mas Mário Centeno seria confrontado já ao fim do dia pelos jornalistas sobre o assunto. Segundo a Lusa, garantiu não ter tido conhecimento das buscas, disse ter “plena confiança na actuação do Ministério Público”, e acrescentou que “o funcionamento das instituições, também da IGF, será totalmente preservado no contexto que se colocar nos próximos dias”.

Notícia actualizada às 13h41 e às 17h45: Acrescentado esclarecimento do Tribunal de Contas a informar que o relatório recebido a 6 de Dezembro de 2018 sobre o tema da Cruz Vermelha Portuguesa foi enviado pela Inspecção-Geral da Defesa Nacional (IGDN).

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