Uma hora infeliz da energia limpa em Portugal

O documento agora divulgado pelo Governo não é mais do que um ato político falhado.

O Governo acaba de lançar, em 5 de Dezembro pp, um “plano energético” orientado pelo ditame político assumido pela comunidade internacional no Brasil em 1992 com vista a combater o aquecimento global do planeta pela restrição das emissões de CO2.

Desde então as emissões de CO2 não deixaram de continuar a crescer em muitos países, como foi o caso de Portugal. Entretanto, dando de barato pequenas e esparsas medidas, surge agora da parte do Governo um hipotético plano justificando e dando forma à quota-parte de Portugal na redução do CO2, tendo em conta as condições de desenvolvimento económico e de natureza climática em geral.

Este documento agora divulgado não é, no entanto, mais que um ato político falhado, apresentando um projeto infeliz porque incompetente e insensato já que se dirige aos “de cima”, isto é, ao exterior, que estará basicamente indiferente ao “como” atingirá Portugal os objectivos a que se comprometeu, e “embrulha” a informação para os portugueses num PowerPoint de conteúdo inqualificável. Terá este a virtude de ser fácil de seguir. Outra coisa pior do que ser capaz de o ler é estar o cidadão apto a entendê-lo. E aqui reside o fracasso do ato.

A infelicidade do documento está, assim, em a) não vir acompanhado dos documentos de política de suporte, limitando-se  a um PowerPoint na prática ininteligível; e está também b) na presunção dos responsáveis do pretenso mérito do resultado político do seu PowerPoint. Vejamos então: será legítimo não assinalar/clarificar as necessidades da energia em Portugal, em termos primários (fontes, externas e internas); em termos finais (nos postos fornecedores ou nos extremos das linhas de aprovisionamento) e em termos úteis? Não seria legítimo enfatizar o caso da construção, elemento físico particularmente próximo de cada português? Sabe cada um de nós que há casas que são “quentinhas” no Inverno e outras não? E essa “não energia” ou energia inerente ao edifício que foi relevante ao longo de séculos não pode ser valorizada hoje através do urbanismo, da arquitetura e da tecnologia da construção, mesmo no novo mundo da reabilitação e de maior exigência de conforto? E isto não tem que ver com urbanismo e gestão da energia na cidade onde vive a maior parte dos portugueses, como no campo, onde a tradição carece de ser ajustada aos tempos que correm? E, no entanto, são áreas onde predomina a acção de órgãos e agentes de cultura energética, competência técnica e ética nem sempre os melhores? Então e quem faz a ponte entre a construção e as energias do PowerPoint de 5 de Dezembro?

Há anos, quando um determinado presidente da Câmara do Porto foi chamado ao Governo, o substituto teve a ideia de rechamar o arquiteto Álvaro Siza para completar um projeto que havia iniciado anos atrás de um edifício que encobriria uma zona pedregosa da Avenida da Ponte, no Porto, enobrecendo assim aquela entrada na cidade. Quando a notícia desta iniciativa do novo presidente chegou aos jornais, vinha acompanhada da foto da fachada, onde era notório o uso excessivo de vidro na fachada orientada a poente. Tendo encontrado o arquiteto Siza Vieira no dia seguinte, perguntei-lhe diretamente: senhor arquiteto, vai deixar toda aquela fachada envidraçada? E a resposta do arquiteto, pessoa de muitas excelências, foi com o dedo a apontar para mim: “Nem o senhor mo perdoaria!” Ora aí está. Aqui, estava-se a pensar contribuir para a contenção do CO2, porque menos vidro a poente iria precisar de imenso sombreamento ou mesmo ar condicionado, se fosse caso disso. Aqui deixo esta homenagem a um grande arquiteto que, recentemente condecorado pelo Presidente da República, é um mestre e um senhor.

Neste enquadramento, poderíamos também evocar a localização tradicional das zonas povoadas no nosso território, valorizando a orientação a sul e abrigando as fachadas a norte do vento frio e litoral. Mas isso não faz esquecer aquele autarca que, inquirido como era a organização urbana da sua cidade, em que cada casa aparecia virada para uma orientação só sua, respondeu: “Que quer, o dinheiro é deles.”

Neste quadro cultural, e sem ir mais longe, resulta claro que há espaço para fazer intervir políticas e tecnologias energéticas que assegurem uma eficiência energética geral no que respeita ao conforto, item de primeira prioridade para a gestão política do construído. E a isto chama-se ter em conta a suficiência, isto é, a capacidade de dispensar o uso da energia das redes (eletricidade ou gás, ou de água quente urbana, na ex-Expo-98, hoje Parque das Nações).

Esta vertente da energia nos edifícios é de grande interesse social, cultural e também climático. E diz respeito a todos os portugueses com a clareza que se impõe numa sociedade cada vez mais informada e mais ciosa do seu futuro, num mundo de vasta diversidade de condições de vida, de meios e de valores. Há três anos, indo apresentar um relatório elaborado por uma comissão da CE à China, falando com a presidente da Agência de Energia sobre a suficiência nos edifícios, no seu jeito eufórico bem chinês reagiu dizendo que já praticam essas medidas, focando, por exemplo, que o equipamento do ar condicionado só é usado em certos locais para retenção da humidade e não para arrefecer o ar até à temperatura de conforto. Acontece que em Portugal, se não houver grande ocupação humana, nem sequer é precisa a redução da humidade nos espaços interiores, desde que a arquitetura e a construção sejam adequadas. E, assim, o ar condicionado é um “bolo já depois do café”... Muitas vezes pretensiosismo, quando não fator de desconforto e de doença.

Voltando ao ato de 5 de Dezembro, estamos, portanto, perante um ato redondamente falhado, comunicacional, técnica e politicamente, que acabará “embrulhado” nas tradicionais desculpas que marcam as periferias... Assim não! E, então, o que falta?

Falta um texto de política energético-ambiental que a) fizesse a charneira do passado recente sem deixar de evocar uma referência aos atentados desonestos e antipatrióticos de notáveis pró-nuclearistas; b) tornasse claro o que é a energia, que não é a eletricidade, nem somente a eletricidade, embora também seja a eletricidade!; e c) como se “capta”, “aprovisiona”, “gere” e “usa” a energia, distinguindo de uma vez por todas entre “usar energia” e “gastar energia”, que é coisa que não existe, e, finalmente, a diferença entre eficiência e suficiência energéticas, esta com um potencial enorme no edificado português.

Com um documento como o apresentado a 5 de Dezembro, se os portugueses não fossem uns “bonserás”, como tantas vezes são acusados de serem, ninguém iria votar nas próximas eleições. Quem lhes deu importância e lhes explicou tintim por tintim ao ouvido o que está em causa no PowerPoint? Certamente que não os responsáveis pelos ares condicionados da Parque Escolar, em que, quando a câmara não tem verba para a electricidade, o odor a humano é simplesmente insuportável e nefasto à saúde e à aprendizagem. No entanto, alguém politicamente colocado, falando sobre as escolas da Parque Escolar a posteriori, declarou que “foi uma festa para os arquitetos”. Exatamente como este PowerPoint? É uma festa para os burocratas de serviço...

Em suma, e para ilustrar a paisagem que determinou o que se deixa acima: o documento é inadequado por omissão e é muito impreciso e ignorante face ao rigor necessário da linguagem energética — v.g., trata o setor elétrico como setor energético; fala em saldo fisiológico quando quererá dizer vegetativo; trata cenários como propostas, usa formas verbais “imbecis” como “produção de energia”, quando a energia não se produz nem se consome, mas se transforma ou “se transita” de um estado ou condição para outros.

Neste contexto, o novo Ministério da Transição Energética, apesar de ter um nome todo cheio de sentido, mostrou--se, afinal, como possuído de artes de prestidigitação, fazendo ver o que não é e que não há e, perante o espanto dos mais incrédulos, chamou a tudo isso política energética.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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