Sobre o desenvolvimento tecnológico

Mundo digital em perspetiva: virtudes e riscos das smart cities

A economia digital, não obstante ser entendida de forma diferente por diferentes atores, é consensualmente referida como uma parte cada vez mais significativa da economia mundial. No relatório anual do Fundo Monetário Internacional, o respetivo indicador aponta para um valor próximo dos 10%, com a OCDE a observar, de forma sustentada, uma diminuição dos preços no consumidor e um aumento do investimento, deixando antever o consequente aumento da sua importância no mundo contemporâneo.

Na condução dessa evolução existem dois pressupostos: os componentes microeletrônicos (no centro dos sistemas digitais) manterão a mesma taxa de miniaturização e de aumento da velocidade (fenómeno habitualmente referido como a Lei de Moore); e as redes de comunicação de dados manterão também as mesmas taxas de aumento da velocidade e da largura de banda (fenómenos habitualmente referidos como a Lei de Edholm e a Lei de Nielsen, respetivamente).

É importante lembrar que não estamos perante verdadeiras leis, mas sim projeções baseadas em observações, que servem para estimular a creatividade (o que poderemos fazer daqui a 20 anos com a tecnologia então disponível?) e, simultaneamente, colocar objetivos no próprio desenvolvimento das indústrias ligadas ao mundo digital. Estes fenómenos estão de tal forma inter-relacionados, que, por vezes, é difícil perceber se um determinado desenvolvimento faz parte de um plano estratégico bem delineado, ou é apenas fruto da necessidade de alimentar e manter a cadeia de valor!

De entre os diversos desenvolvimentos tecnológicos já consolidados, no contexto desta reflexão há um que merece uma atenção especial: a transição do IPv4 para o IPv6. Na Internet todos os computadores acessíveis publicamente precisam de um endereço que os identifique unicamente. Desde o seu aparecimento nos anos 80, o IPv4 foi a norma usada para definir esses endereços, permitindo cerca de 4 mil milhões de endereços.

Contudo, o ritmo de crescimento dos pequenos dispositivos computacionais (mas com recursos computacionais que os coloca ao nível dos computadores de há uma década atrás – refira-se, em particular, os smartphones) revelou um défice no número de endereços disponíveis, especialmente para um planeta que se deseja interligado.

Em resposta, no final da década de 90 foi criada uma nova norma, designada por IPv6 e que tem vindo a ser lentamente absorvida pela infraestrutura de comunicações, globalmente. A gama de endereços IPv6 permitirá endereçar publicamente milhares de dispositivos por cm2 da superfície da Terra. A Internet que conhecíamos está, desta forma, a transformar-se na Internet das Coisas (Internet of Things, ou IoT), termo este que pretende passar a ideia de que qualquer “coisa” (leia-se, dispositivos digitais) pode ser ligada a esta nova Internet. Esta, por sua vez, cria um verdadeiro ciberespaço, desde logo abrindo um potencial de oportunidades de negócio e de aplicações.

Uma das áreas que naturalmente irá absorver esta evolução é a dos espaços urbanos. Isto não só porque i) a tendência de concentração de pessoas nesses espaços se tem vindo a acentuar, criando problemas cuja resposta eficiente exige soluções de tecnologia digital (e.g., controlo de tráfego inteligente), mas também porque ii) a disponibilização de meios tecnológicos digitais (e.g., grandes ecrãs, acesso contínuo a meios de informação, comunicação e geo-localização) cria um novo ecossistema que irá moldar o próprio espaço e os comportamentos. Este fenómeno já ocorreu com outras importantes revoluções tecnológicas, como seja o automóvel, mas o potencial impacto desta nova revolução poderá ultrapassar aquilo que mesmo os mais imaginativos anteveem. Desta forma, a smart city, será aquela que incorporará as mais diversas tecnologias digitais e, de uma forma integrada, utilizará toda a informação disponível para promover as condições de vida no espaço urbano.

Mas haverá vontade e/ou liderança para conduzir essa evolução colocando-a ao serviço da cidade e dos cidadãos? Se a resposta for sim, então teremos realmente smart cities. Se a resposta for não, então teremos soluções proprietárias de, por exemplo, gestão energética “inteligente”, estacionamento “inteligente”,  tráfego “inteligente”, ficando a miragem da Cidade Inteligente como um excelente tema para promover a própria evolução da tecnologia, apenas.

Segurança da informação e privacidade 
Pelo que foi atrás referido, a smart city será um processo de transformação digital (que já está a decorrer) e não um projeto. Um processo que consiste na construção de um Sistema de Sistemas de Sistemas…, com um nível de complexidade enorme e sem um prazo de conclusão definido.

Neste processo e porque lidamos com cidadãos, é com naturalidade que nele se centrem alguns dos principais requisitos: melhoria da qualidade de vida e de trabalho; mobilidade; e sustentabilidade. Não é fácil avaliar até que ponto as soluções verticais que é comum encontrar em projetos piloto, em cidades por todo o Mundo (Copenhaga, Singapura, Estocolmo, Zurique, Boston, Tóquio, etc.), cumprem estes requisitos. Mas é fácil perceber que vários projetos são abandonados depois de investimentos consideráveis!

Na base desse abandono está, frequentemente, a confiança que os cidadãos depositam nas soluções disponíveis, face aos benefícios que delas decorrem. A Segurança da Informação e a Privacidade (ou a perceção da sua ausência) são elementos com elevado impacto nesse nível de confiança. A Segurança da Informação é a garantia da preservação de algumas propriedades não funcionais, como seja a integridade, a confidencialidade e a disponibilidade, de acordo com alguns níveis de referência, estabelecidos por algum tipo de entendimento (social, organizacional, técnico, etc.). A privacidade, por seu lado, é o direito (atualmente reforçado pelo Regulamento Geral de Proteção dos Dados Privados – RGPD – produzido pela UE) que cada cidadão tem sobre a gestão dos seus dados privados.

É sobejamente reconhecido que a implementação de mecanismos de segurança e privacidade é extremamente difícil. Em primeiro lugar porque, numa lógica puramente económica, esse mecanismos são entendidos como custos, ou, pior ainda, como obstáculos ao modelo de negócio, que promove a simplicidade e flexibilidade nas funções de acesso à informação – este é um problema que apenas encontra solução ao nível regulamentar, como foi recentemente demonstrado com a implementação do RGPD e ao qual, por força das coimas impostas, as organizações estão a aderir.

Em segundo lugar porque, mais vezes do que era desejável, os comportamentos de todos os stakeholders são irresponsáveis e inadequados, muitas vezes condicionados por ausência de preparação e de educação adequada. Não é difícil encontrar informação sobre ataques já efetuados sobre estruturas de IoT, explorando debilidades de configuração (e.g., uso de palavras-passe fracas em câmaras de vídeo vigilância), exposição excessiva, sem monitorização e segurança intrínseca (e.g., sistemas de controlo de automóveis, ou de edifícios/casas, idealizados para ambientes fechados e agora expostos em ambientes abertos), ou ainda roubo de informação (e.g., em hospitais e agências financeiras, explorando dispositivos móveis), entre outros possíveis ataques.

Assim, para o sucesso das smart cities, é obrigatório incluir as questões de segurança e privacidade nos planos de desenvolvimento dos projetos tecnológicos, apostar em regulamentos e normas adequados, assim como educar e treinar devidamente os cidadãos para esta realidade emergente. Sem estes cuidados dificilmente poderemos usufruir plenamente desta revolução.

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