Antes de os voluntários o visitarem não tinha ninguém, só a solidão

Projecto Abraço Amigo, do Grupo de Acção Social do Porto, visa dar apoio a idosos em situação de isolamento. O “Senhor Quaresma”, um contador de histórias, é um dos beneficiários.

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Nelson Garrido
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O senhor Quaresma acompanhado pelos voluntários Nelson Garrido
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É bem lá ao fundo do corredor, no último quarto à direita da Hospedaria Nau, no Bonfim, no Porto, que Manuel Quaresma aguarda, com rádio e televisão ligados, mais uma visita semanal dos voluntários que o acompanham. É um verdadeiro contador de histórias, de riso fácil e divertido. Com 72 anos que estarão completos na próxima semana – ainda “um jovem”, diz – a cadeira de rodas é a sua melhor amiga, depois de ter perdido as duas pernas, mas nem por isso perdeu a vontade de passear. “Quando não chove ando sempre na rua”, afirma.

Portista ferrenho que é, nos dias mais frios, veste o seu gorro do FC Porto e lá vai o “senhor Quaresma” - – como é conhecido - por essa cidade fora. “Ainda me falta visitar o Museu do Porto”, diz o homem que trabalhou toda a vida na construção civil tendo passado por quase todos cantos do país. Mas, nesta terça-feira, como o dia não estava para grandes passeios ficou por casa à espera de Pedro Gustavo e da Maria Nunes (ambos com 26 anos), os jovens que o acompanham e que pertencem ao projecto Abraço Amigo da associação GAS Porto – Grupo de Acção Social do Porto. Pedro estuda Engenharia Mecânica na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (UP) e Maria trabalha na área da consultadoria.

Hoje celebra-se o Dia Internacional do Voluntariado e na UP – que é parceira do GAS Porto neste projecto – já são mais de 2900 estudantes a integrar este tipo de projectos.

Ao entrarmos no quarto encontramos afixado na parede um calendário, claro está, do FC Porto. “Nós temos algumas desavenças por causa disso”, conta Maria. “Não ligue menina que ela é lisboeta”, riposta o Manuel Quaresma. O envolvimento e o à-vontade com os voluntários permitem uma conversa descontraída e lá começa o “senhor Quaresma” contar uma das suas histórias.

As suas traquinices não deixam ninguém indiferente. Então não é que tem as senhas do metro no cartão mas não há meio de as validar? “No sábado fui apanhado pelos fiscais” (risos). “Ele só faz asneiras”, confidencia Maria, mas o Manuel contesta, com o riso já no canto da boca, “eu não fiz asneiras nenhumas, quando era mais novo, com 16 ou 17 anos, é que fazia asneiras”. Já vai para dois anos, concluídos no Natal, que tem as senhas do metro carregadas, assegura. “No sábado, fizeram-me ficar lá em Campanhã e disse o careca [o fiscal] para mim ‘agora tem que passar aqui na máquina para validar’, mas eu sei lá o que é validar, meto o cartão na algibeira e toca a andar”, explica tomado pelo riso.

Pediu folga à enfermeira

Antigamente passeava muito na zona do Hospital São João, onde vivia e tinha consultas diariamente, mas entretanto cansou-se e foi “pedindo uns dias de folga à enfermeira”. “Oh Pedro conta lá aquela história de quando fui para a VCI [Via de Cintura Interna] ”. “Você veja lá o que é que quer que seja público”, responde-lhe. Como está acostumado a fazer, foi passear. “Eu andei, andei, e, de repente, era só alcatrão, nem placas havia e ainda por cima ia em contramão, mas para andar de cadeira de rodas não é preciso carta de condução. Fui andando e quando dei por ela já estava na ponte da Arrábida, olho para baixo e digo ‘calma lá que aqui em baixo é o Rio Douro’, dei meia volta e voltei para trás”, começa por explicar deixando o mais insólito para depois. Foi apanhado pela polícia. “A polícia mandou-me parar e pediu-me os documentos, eu tinha os da cadeira de rodas aqui de lado [aponta] mas só lhes mostrei o Cartão de Cidadão”. “Ele leva os documentos só que não os mostra”, completa Maria.

Já lá vão mais de oito anos desde que os voluntários deste projecto começaram a visitá-lo e já nem se lembra de muitos dos seus nomes. Antes destes jovens tinha visitas? “Eram outros, a Carlota, a Catarina…” Sim, mas antes do GAS Porto lhe fazer visitas? “Antes não tinha cá ninguém”, explica. Para ele, “é melhor ter companhia e sempre se passa melhor o tempo” e ele até gosta, diz.

Ultrapassar barreiras

Nas suas visitas semanais, os voluntários não têm muito a fazer a não ser fazer companhia. “Podemos ajudar em alguns favores mas nem isso ele pede”, explica Maria, que já acompanha Manuel há dois anos. “Ele é muito bem-disposto, portanto não é difícil ter que ultrapassar barreiras ou ter que o animar, é só manter a boa disposição”. A admiração de Maria por este contador de histórias é notável. “Ele tem princípios de vida muito giros e eu ganho tanto quanto ele em vir cá”, explica.

Pedro Gustavo destaca a história de uma senhora que acompanhou e que, conta, já não tinha vontade de viver. “Ela dizia que queria que Deus a levasse, que já não estava cá a fazer nada. Acabou por ir para um lar, e, a determinado ponto, vimos no lar uma frase afixada que dizia ‘Antes pedia que Deus me levasse, agora peço-lhe que espere mais um bocadinho’ e acho que essa é a melhor definição do Abraço Amigo: mostrar que a vida ainda vale a pena”.

Texto editado por Pedro Sales Dias

Artigo corrigido às 16h30 desta quarta-feira. Ao contrário do que o PÚBLICO referia, este projecto não é da Universidade do Porto (UP). É do GAS Porto, uma associação parceira da UP.

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