Um conflito mundial sério não é uma hipótese remota

Não é possível continuarmos a ter todos os meses este tipo de provocações e abusos sem que o perigo de uma atitude irrefletida aumente.

Consideremos três episódios. O Kremlin enviou dois espiões ao Reino Unido para assassinar um ex-espião e a sua filha, a operação foi levada ao cabo de forma amadora, os dois espiões foram identificados, as autoridades russas alegaram que eles eram turistas, mas foi entretanto demonstrado que eram ambos pertencentes aos serviços de segurança e operações especiais russos, um deles condecorado por Putin. Tirando o folclore, o que fica é isto: Putin acha admissível ordenar assassinatos em território estrangeiro.

Como vivemos numa época em que a amoralidade não apenas impera nas relações internacionais como se trata de uma amoralidade patente e ostentada — ou seja, sem qualquer verniz de disfarce — é natural que o exemplo seja seguido. E assim chegamos ao caso de Jamal Khashoggi, que alguém no topo do poder saudita, provavelmente o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, mandou matar, desmembrar e fazer desaparecer num consulado saudita em Istambul, em território turco.

Voltando a ações da cadeia de comando russa, temos o terceiro episódio: o caso dos barcos e marinheiros ucranianos apresados no estreito de Kerch, no Mar Negro, quando se dirigiam para território ucraniano — não só território ucraniano segundo o entendimento dos ucranianos, não só território ucraniano segundo o direito internacional, mas mesmo território ucraniano até segundo as autoridades russas. Os barcos ucranianos não se dirigiam para a Crimeia (que é oficialmente ucraniana para quase todo o mundo à exceção da Rússia) mas para Mariupol, uma cidade costeira que os próprios russos desistiram de tentar conquistar em 2015. Claro que para as autoridades russas o facto de barcos ucranianos se dirigirem de território unanimemente considerado ucraniano para território unanimemente considerado ucraniano é, e cito, “uma provocação”.

Isto porque para o poderem fazer os ucranianos têm de passar por um estreito entre a Crimeia (ucraniana para a Ucrânia, russa para a Rússia) e a costa russa do outro lado. Mas mesmo que esse estreito fosse inteiramente russo, não deixava de ser necessário que os barcos ucranianos aí tivessem direito de passagem para chegarem a cidades que são unanimemente consideradas suas — a não ser que Putin esteja a pensar fazer uma jogada para as conquistar.

Para dar uma ideia, no outro canto do Mar Negro encontra-se o estreito do Bósforo, que é turco de ambos os lados, mas que tem obrigação estipulada pelo direito internacional de deixar passar os barcos de todos os outros países para poderem aceder ao Mediterrâneo. A própria Rússia depende do cumprimento dessa obrigação para levar os seus barcos até à Síria e consideraria um escândalo que os turcos fizessem aos seus barcos o que a marinha russa acabou de fazer aos barcos ucranianos.

O que é que isto nos diz? Em primeiro lugar, aquilo que qualquer observador que não fosse supremamente ingénuo já poderia ter imaginado desde que a vaga nacional-populista começou: que os nacionalistas, na verdade, detestam a soberania. Detestam a soberania dos outros, é claro, mas desprezam também a soberania dos seus próprios povos que querem viver em paz e se estão a ver arrastados para a guerra.

Mas mais do que isso, os nacionalistas detestam a nação. Dizem adorar a sua própria nação e respeitar a dos outros, mas não nos devemos esquecer que o seu modo político principal é a hipocrisia. Putin não acredita que a Ucrânia seja uma nação, mas também não leva a sério a Rússia, a não ser como Putinlândia. Tanto ele como Erdogan da Turquia e Mohammed bin Salman da Arábia Saudita acham que a Síria não é uma verdadeira nação. E este último acha que o Iémen não é uma nação também.

Mas isto não é ainda o pior. O pior é que o atual ambiente mundial lhes dá rédea solta para testarem os limites do que podem fazer antes de rebentar um conflito, se não um conflito descontrolado, pelo menos um conflito sério, entre grandes poderes. Não é possível continuarmos a ter todos os meses este tipo de provocações e abusos sem que o perigo de uma atitude irrefletida aumente. Não é linguagem técnica de relações internacionais, mas é uma conclusão inevitável: tantas vezes o cântaro vai à fonte que alguma vez se há de quebrar.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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