Linha Universidade de Aveiro: do outro lado do telefone pode estar qualquer coisa, até silêncio

De aluno para aluno, na Universidade de Aveiro há uma linha telefónica nocturna para apoio e aconselhamento emocional e psicológico que, mesmo numa época de comunicação fácil, continua a fazer sentido.

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Adriano Miranda

Tem tudo para ser uma sala de trabalho igual a tantas outras. Secretárias, computadores e uma mesa de apoio, com chaleira eléctrica, canecas e colheres. Apenas os três grandes pufes de napa, encostados ao fundo da parede, deixam antever que, por ali, também se pode passar algum tempo a descansar. Inclusive, a dormir, porque o horário é propício a isso e há noites em que o telefone nem sequer toca. Mesmo assim, tem de haver sempre uma voz pronta a escutar, a falar, a apoiar. Na maior das confidencialidades, sob anonimato e sem emitir juízos de valor ou opiniões. De aluno para a aluno. Porque o propósito da LUA – Linha Universidade de Aveiro passa, precisamente, pela prestação de um apoio e aconselhamento a universitários por parte de universitários – chamado peer counselling.  

Criada há 25 anos, a primeira linha telefónica nocturna de apoio a universitários a surgir no país continua a ter razões para existir. Mesmo numa era em que tudo e todos estão sempre tão próximos e ligados, continua a fazer sentido manter uma linha telefónica gratuita (800 208 448) para ouvir quem está numa situação de fragilidade, com problemas emocionais ou a sofrer de stress ou ansiedade na sua vida académica. Entre as 21h e as 01h, há sempre alguém na sala da LUA pronto para atender a(s) chamada(s). São voluntários, oriundos dos mais variados cursos da Universidade de Aveiro, e ainda que não sejam psicólogos obtiveram formação específica para a missão que estão a cumprir.

A maior fatia dos telefonemas que ali chegam – 43,5% no último ano – são “chamadas silenciosas”. “A pessoa telefona, chora e não fala. Ou telefona e só a sentimos respirar”, aponta a coordenadora da LUA, Anabela Pereira – foi ela própria quem desenvolveu a linha no âmbito do seu doutoramento. Perante o silêncio, a quem está a atender a chamada resta esperar. “Só dizemos ‘estamos aqui, estás à vontade’”, acrescenta a investigadora. A outra grande tipologia de chamadas (34,8%) está relacionada com problemas de solidão, revela a coordenadora.

Também há quem procure a LUA devido a “ansiedade nos exames, problemas com o método de estudo, com professores”, enumera Anabela Pereira, juntando à lista as chamadas relacionadas com “relações íntimas, nomeadamente por causa do fim do namoro, violência no namoro ou casos de violação”. Num passado recente, no auge da crise, era igualmente comum atender chamadas referentes a “problemas económicos relacionados com a família”.

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Adriano Miranda

Os alunos que atendem o telefone estão preparados – e treinados – para praticamente tudo. São sujeitos a uma formação inicial, teórica e prática (simulação), e sempre que há necessidade são promovidas acções específicas. Ainda assim, há questões difíceis de enfrentar. As tentativas de suicídio aparecem no topo da lista. “Dói quando a pessoa diz: já tomei os comprimidos, não quero que chame o INEM, só estou à espera que chegue a minha hora e quero alguém a ouvir-me”, especifica a coordenadora da linha. Ainda que raros, estes casos obrigam a que se pense nos “alunos que estão a atender o telefone, os voluntários”, que, inevitavelmente, “ficam perturbados”.

“Manuel”, nome fictício – para manter a confidencialidade e anonimato do serviço, os voluntários são aconselhados a manter a discrição -, está a iniciar o seu segundo semestre como voluntário da LUA e já guarda uma memória mais difícil de apagar. “Uma rapariga ligou a dizer que estava com dores de cabeça, já tinha ido a médicos que disseram que ela tinha de fazer um exame e ela estava ansiosa por ainda não a terem chamado”, introduz. “Tentei saber qual a causa das dores de cabeça e ela disse que as tinha desde que o pai a espancou para abortar de um filho dele. Eu não estava nada preparado para aquilo”, confessa o aluno de Engenharia Física.

Ajudar a tomar uma decisão

Uma das regras basilares da LUA passa por o voluntário não emitir qualquer opinião em relação aos factos que lhe são apresentados por quem está do outro lado da linha. “Se alguém liga a dizer, por exemplo, que abortou, não podemos ter um aluno deste lado a dizer que é pecado”, sublinha a coordenadora, assegurando que questões como esta são muito trabalhadas na formação. A quem atende cabe apenas “trabalhar o indivíduo de maneira a que este crie recursos para decidir”, destaca a investigadora.

Neste novo ano lectivo, a LUA formou já mais 40 alunos, 34 dos quais estão já aptos a começar a trabalhar na linha nocturna – os outros seis ainda vão ser sujeitos a entrevistas individuais com psicólogos. Entre eles está “Marisa”, outro nome fictício, estudante de Psicologia, que estava a estrear-se na escuta da linha da UA no dia em que o PÚBLICO esteve por lá. “Sinto-me preparada para o que pode vir, uma vez que a formação tocou os pontos cruciais”, confessa. Decidiu integrar aquele serviço de voluntariado porque gosta de “perceber” até onde pode ir, mas também “para treinar a escuta activa”. Na sua noite de estreia, apresentou-se ao serviço “sem expectativas”, mas confortada pela presença de um colega mais experiente na sala.

O serviço termina às 01h, mas nos seus primeiros anos de existência a linha funcionava toda a noite. A partir de 2009, quando a LUA foi retomada depois de um interregno, percebeu-se que “era difícil para os alunos estarem disponíveis toda noite”. “Para ajudar uns, não podíamos prejudicar outros e, por isso, optámos por ter o serviço durante o leque de horas com maior frequência de chamadas”, enquadra a coordenadora da primeira nightline de apoio a universitários por universitários – seguiu-se-lhe a SOS Estudante, de Coimbra. É verdade que também ali chegam telefonemas de pais, de professores e, inclusive, de fora da comunidade académica da UA, mas ainda que não seja esse o foco, essas chamadas não deixam de ser atendidas. As realizadas por alunos da universidade aveirense, caso necessitem de um acompanhamento profissional, são encaminhadas para um serviço de consultas – designado LUA Face-to-Face -, onde uma equipa de psicólogos clínicos seguirá o caso.

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