Jerónimo de Sousa: "O mandonismo da União Europeia alimenta sentimentos xenófobos"

Jerónimo de Sousa, 70 anos, é líder do PCP há 14 anos e ainda lhe faltam dois para terminar o mandato. Pelo menos. "Irei continuar a dar a minha contribuição", diz ao PÚBLICO e à Renascença.

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Daniel Rocha
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Em entrevista ao PÚBLICO e à Rádio Renascença – que é emitida esta quinta-feira ao meio-dia –, o secretário-geral do PCP afirma que as políticas da União Europeia (UE) são responsáveis pelo crescimento da extrema-direita. E também que “o pedregulho de imposições” da UE é o maior empecilho a uma maior convergência com o PS.

No fim-de-semana passado tivemos a convenção do Bloco de Esquerda, na qual ficou muito claro que aquele partido quer ir para o Governo. O PCP quer ir para o mesmo Governo que o Bloco?
O que o PCP propõe é a ruptura com esta política que apresenta défices estruturais de fundo. Quando se fala de Governo, é evidente que o PCP, em relação ao poder, não se põe numa mera posição de partido de protesto. Mas coloca uma questão primeiro: um Governo para quê? Para quem? Para fazer que política? A ideia de querer participar no Governo a todo o custo, independentemente das políticas que esse Governo vai realizar, não corresponde à necessidade de um caminho novo e de uma política alternativa. 

E em que políticas é necessário haver rupturas com o PS para poder haver um acordo de Governo?
Na forma de combater aquilo que são os défices estruturantes do nosso país, designadamente aumentar a produção nacional, que é a questão-chave e é daí que decorre depois o aumento do emprego - e também em relação à dívida: produzindo mais, devemos menos. Um outro eixo fundamental é a valorização do trabalho e dos trabalhadores, nos seus direitos, nos seus salários, na política fiscal, na legislação laboral. É preciso inverter aquilo que o PS teima em manter, como se verificou na proposta de lei da legislação laboral. É preciso também uma resposta efectiva a outros défices, como o da demografia. Não encontramos respostas nem solução duradoura. O défice agro-alimentar é outro problema, a questão dos serviços públicos, da saúde, da educação, da própria segurança social, o défice energético. O que verificamos é que o PS insiste em não encontrar respostas sólidas, a par desta questão central dos constrangimentos e das imposições da UE e do euro, que conduz a uma encanzinação - passe o termo - em relação à necessidade de desenvolvimento e crescimento económico. Encontra sempre ali barreiras...

O ministro dos Negócios Estrangeiros defendeu em entrevista, também aqui à Renascença e ao PÚBLICO, que um próximo acordo numa nova legislatura devia implicar as questões internacionais e europeias. Alguma vez será possível o PCP e o PS chegarem a acordo em matéria europeia?
A vida é dinâmica. O que é verdade hoje pode ser mentira amanhã. Existe esta dificuldade, este bloqueio, este pedregulho de imposições por parte da UE que condicionam qualquer perspectiva de que seja fácil uma convergência com o PS.

Não será fácil, mas da convenção do Bloco de Esquerda não saiu como linha vermelha o facto de o PS continuar a querer cumprir os compromissos europeus. Para fazer um acordo de Governo com o PS, o PCP exigiria que o PS abandonasse completamente a sua política europeia?
Estamos em crer que sem uma ruptura com essas concepções não há uma verdadeira política alternativa. Infelizmente, tem sido a vida a demonstrar que temos razão. Na actual conjuntura, verificamos avanços significativos na reposição de rendimentos e direitos dos trabalhadores e do povo português, mas depois quando precisamos de ser mais audaciosos em relação ao investimento público...

Em Fevereiro falávamos em contradições entre o PCP e o Governo que se podiam tornar insanáveis. Essa é uma das contradições insanáveis?
É uma contradição insanável que a vida coloca como uma grande questão na ordem do dia. 

Mas o PCP não faz mesmo um acordo com um Governo PS na próxima legislatura por causa da Europa?
O PS não abdica da sua política europeia. Nós não abdicamos de princípios, valores e projectos que temos para a sociedade portuguesa em questões tão importantes como a dívida, o serviço da dívida, o défice orçamental e a renegociação da dívida. Nós não dizemos não pagamos, não é isso. Defendemos a renegociação. Hoje todos nos inquietamos com o desenvolvimento das forças xenófobas, racistas, mas a verdade é que este mandonismo da União Europeia é fonte de alimento de sentimentos... Mal ou bem, as pessoas assumem como questão fundamental poder decidir da vida e do futuro do seu país. E se a União Europeia é um obstáculo a isso - e é - surge como reflexo a resposta inquietante desses movimentos, que capitalizam para si a defesa da soberania e do desenvolvimento económico e social. A melhor resposta que se pode dar a essas forças é a garantia e a afirmação da nossa soberania nacional, não no quadro isolacionista, que não defendemos. 

Este acordo correu bem? E vai correr até ao fim?
Correu, na medida em que, mesmo com todas as limitações, houve avanços na reposição de rendimentos e direitos. E eu acrescentava aqui uma questão: houve uma certa reposição da esperança do povo português de que era possível uma vida melhor. É um elemento subjectivo, mas que tem importância. O programa do Governo do PS era bastante limitado. Lembro-me que, durante as negociações, o PS fez uma grande força para que nós aceitássemos na posição conjunta a votação favorável dos orçamentos. Foi um momento muito sensível em que nós afirmámos claramente que não passávamos cheques em branco. 

E o que é ainda possível concretizar mais nesta legislatura?
Contamos com avanços na protecção social em relação ao abono pré-natal e em relação aos cuidadores informais, aos desempregados de longa duração...

Em relação aos cuidadores informais o que está no Orçamento é no fundo uma declaração de boas intenções. O que se pode concretizar na especialidade?
A proposta do PCP defende apoios sociais para esse trabalho meritório e responsabiliza o Estado. Estamos ainda em fase de negociação. 

E como vão votar a taxa da protecção civil?
Não estamos de acordo com a ideia da dupla tributação para os cidadãos que já pagam os seus impostos e que depois ainda teriam, no seu concelho, de pagar uma taxa, o que significaria pagar a dobrar. Não acompanhamos a proposta do Governo. 

Já é do domínio público que o primeiro-ministro António Costa prefere negociar com o PCP a negociar com o Bloco de Esquerda. Por que é que acha que isso acontece? Têm tido uma boa relação...
Há um elemento que me parece decisivo para que António Costa possa ter essa opinião, que é o rigor e o fundamento dos nossos posicionamentos e propostas. E a franqueza, a seriedade e a frontalidade com que sempre lidámos com o Governo. Um dos balanços que se podem fazer é que até aqui os compromissos que o Governo assumiu com o PCP foram cumpridos, o que não invalida a nossa crítica em relação a algumas matérias que o Governo se disponibilizou para resolver e depois começou a derrapar, a derrapar, a arrastar os pés...

Tais como?
Por exemplo, a questão dos professores, das forças de segurança, até da justiça. Havia uma norma do Orçamento de 2018 para a reposição e contagem do tempo de serviço e de repente o Governo resolveu não materializar aquilo que está no Orçamento em vigor. Foi um caso em que o Governo não cumpriu a palavra dada. Vamos tentar alterar o decreto para repor o tempo de serviço dos professores e não chumbá-lo, ficando de mãos vazias.

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