Homenagem a Merkel

Nas horas decisivas da vida europeia dos últimos anos Merkel esteve presente e, no essencial, esteve à altura.

Angela Merkel, uma das figuras políticas mais detestadas pelos vários extremismos europeus, nunca teve a pretensão de ser nem mais nem menos do que aquilo que tem sido. Pode parecer pouco, mas na realidade é muito. Uma líder profundamente europeísta, imbuída de profundas convicções democrático-liberais e influenciada pela circunstância de ter crescido numa sociedade amordaçada. Ela sempre recusou qualquer dimensão profética, qualquer vocação visionária, qualquer pretensão salvífica. Como todos os líderes políticos, cometeu erros, deu provas de indecisão, revelou por vezes alguma incompreensão da verdadeira natureza das circunstâncias que a envolviam. Uma coisa é, porém, certa: nas horas decisivas da vida europeia dos últimos anos Merkel esteve presente e, no essencial, esteve à altura.

Na última terça-feira pronunciou aquele que poderá ter sido o seu último discurso perante o Parlamento Europeu. Não terá sido por acaso que no final da sua intervenção foi ovacionada de pé durante alguns minutos por deputados oriundos das grandes famílias políticas do centro, do centro-esquerda e do centro-direita. A sua oratória foi límpida, clara e convicta. Uma vez mais revelou com grande transparência a natureza das suas origens doutrinárias e as características da sua personalidade política. No plano ideológico, Merkel é um produto tardio do pensamento ordoliberal alemão a que empresta o cunho peculiar da sua formação religiosa protestante e a sua especial predilecção pela salvaguarda dos direitos fundamentais, como é próprio de alguém que viveu sob um regime que os negava. Quando Merkel fala de solidariedade — e anteontem esse vocábulo foi várias vezes utilizado no seu discurso — remete para um imaginário político e social onde prevalece uma noção de indivíduo revestido do sentido da responsabilidade comunitária.

A sua percepção do liberalismo não se enquadra por isso no modelo do neoliberalismo de inspiração anglo-saxónica, tal como a sua perspectiva solidarista não aponta para a tradição da social-democracia europeia. Contrariamente a Margaret Thatcher, Merkel sabe que todo o indivíduo contém uma dimensão social; ao mesmo tempo, ela entende que essa dimensão não pode chegar ao ponto de anular o sentido da responsabilidade individual.

Consciente da importância do discurso anteontem proferido, a chanceler alemã recorreu a palavras densas para descrever a presente situação. Começou por falar de uma crise da “alma europeia”. Ao descrevê-la, enunciou as razões que concorrem para o ambiente de medo que assola não somente a Europa, mas praticamente toda a Humanidade. Se esse medo tem vindo a adquirir uma destilação particularmente ameaçadora no contexto europeu não é por outro motivo que não o das extraordinárias expectativas que a contemporaneidade europeia havia legitimamente gerado. A Europa é antes de mais nada vítima da dimensão encantatória das virtudes subjacentes ao seu projecto, ao seu discurso e à sua projecção simbólica.

A história ensina-nos que as civilizações podem morrer do seu próprio sucesso. Nem sempre se fenece por decrepitude. Consciente ou inconscientemente, foi isso que Angela Merkel nos veio dizer e recordar. A Europa perder-se-á se por qualquer motivo deixar de estar à altura da representação que historicamente projectou de si própria. É por isso que quando os governos húngaro, polaco ou romeno põem em causa as regras do Estado de Direito não se limitam a prejudicar os seus respectivos espaços nacionais, antes ofendem e apoucam o projecto europeu no seu todo. Esta tese só tem sentido para quem identifica esse mesmo projecto como uma comunidade submetida a uma conformação constitucional democrático-liberal. Limitar os Direitos Humanos em Praga, em Varsóvia ou em Budapeste, atentar contra o princípio da separação dos poderes em qualquer uma destas capitais, vulnerabiliza a alma do projecto europeu. Merkel foi duríssima para com os tiranetes que conspurcam o ideal europeu.

O ponto mais controverso da sua alocução terá consistido no apelo à formação de umas forças armadas europeias que funcionassem simultaneamente como garante da paz intraeuropeia e instrumento de segurança e defesa no plano externo. Esse tema tem o condão de invocar velhos fantasmas, que atormentam a relação franco-germânica, e de suscitar epidérmicas reacções soberanistas em quase todos os Estados europeus, a que se devem acrescentar alguns receios provenientes de sectores que antevêem na constituição dessas forças armadas uma relativa desvalorização do atlantismo. Curiosamente, o actual Presidente francês também já se havia declarado favorável ao surgimento dessa nova figura, a do exército europeu. Só se pode atingir tal plano se houver um acordo prévio no sentido do reforço da integração política europeia. Macron e Merkel quiseram dar um inequívoco sinal nesse sentido. Contrariamente à generalidade das reacções políticas observadas no nosso país, grande parte delas motivadas por puro cálculo eleitoralista, considero muito bem-vindo este posicionamento franco-alemão, que abre novas perspectivas de cooperação numa área vital da solidariedade política entre os Estados-membros da União Europeia.

Apesar de me não situar na sua família política e de em vários momentos não me ter reconhecido nas suas declarações e opções, fui um dos que aplaudiu de pé a chanceler Merkel na convicção plena de estar a prestar um tributo justo a uma grande europeia e a uma grande europeísta.

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