Na cidade de Karl Marx

Só um grande escritor pode chegar a um país devastado e fornecer-nos uma amostra viva da paisagem e das pessoas.

Sábado, 13 de Outubro, o canal de televisão Euronews, ao fim do dia, mostrava imagens de duas manifestações importantes, que não vi reproduzidas nem referidas nos media portugueses. Uma em Paris sobre as alterações climáticas, reagindo ao comunicado recente do painel das Nações Unidas que se ocupa do assunto, alertando para as consequências catastróficas que se adivinham para o planeta, se os governos dos principais países poluidores não tomarem medidas para estancar o aquecimento global. Havia um cartaz significativo, que perguntava: “Paris, 13 de Outubro, 27 graus centígrados! É isto normal?”

A outra manifestação, no mesmo dia e à mesma hora, realizou-se em Berlim e juntou também milhares de pessoas exprimindo a sua repulsa pelas acções da extrema-direita que tiveram lugar recentemente em Chemnitz, antiga Karl Marx Stadt, na Alemanha oriental, onde se exteriorizaram apelos à xenofobia, racismo e ódio contra os imigrantes. Manifestação que não me surpreendeu, já que, em finais de Agosto, numa curta visita a Berlim, pude testemunhar que ali os imigrantes circulam livremente sem serem alvo de atitudes hostis. Há mesmo em Alexander Platz, a icónica praça no centro de Berlim oriental, a seguinte inscrição, em grandes dimensões, num dos edifícios mais altos: “STOP WARS! MIGRANTS WELCOME!”

Com efeito, vi muitos imigrantes de várias origens nas ruas e centros comerciais, não apenas africanos como também os descendentes dos vietnamitas que há 50 anos vieram para a antiga República Democrática Alemã como refugiados e para serem tratados nos seus hospitais, fugindo aos bárbaros bombardeamentos que os americanos infligiram ao Vietname, assim como ao Laos e ao Camboja durante a década de 1960 e princípios da de 70. Na ânsia de quererem estancar o comunismo na Ásia. Que lhes ficou como pedra no sapato, depois da proclamação da República Popular da China, em 1 de Outubro de 1949. Que veio prejudicar toda a sua estratégia, num momento em que a nova administração, que sucedeu ao malogrado presidente Franklin Roosevelt, já tinha decidido passar a tratar a União Soviética como inimiga e não como a aliada com quem os Estados Unidos tinham ganho a guerra contra os nazis alemães e fundado a Organização das Nações Unidas em 1945.

A “perda da China”, como passou a ser referida, foi objecto, à última hora, de uma tentativa do presidente Truman para o evitar, enviando àquele país o general George Marshall, que ficou conhecido como autor do plano para a reconstrução da Europa depois da Segunda Guerra Mundial. Ainda em 1945, Marshall parte para a China, numa missão de dois anos, a fim de tentar apaziguar as partes em contenda, comunistas e nacionalistas, que se guerreavam há 20 anos. Percorre grande parte do país, encontrando-se com os responsáveis comunistas, Mao Tsetung e Chou Enlai, assim como com o generalíssimo Chiang Kaichek. A missão consistia em obter um cessar-fogo e tentar que as duas partes aceitassem um governo de coligação.

Esta missão é descrita no The New York Times de 6 de Setembro passado, na resenha de um livro de Daniel Kurz-Phelan, intitulado The China Mission. Claro que a missão não teve sucesso, a guerra civil iria durar mais dois anos, com a vitória dos comunistas e a debandada das tropas de Chiang Kaichek para a ilha de Taiwan. O general Marshall regressa em 1947 aos Estados Unidos, onde já grassa a caça às bruxas aos “comunistas”, encabeçada pelo senador McCarthy. E chega a ser incomodado por alguns congressistas republicanos, que afirmam ser o falhanço de Marshall devido a “uma vasta teia de espiões comunistas e simpatizantes operando em todos os níveis do governo”.

O clima nos Estados Unidos é de iminente declaração de guerra à União Soviética. Neste país, as grandes cidades, por contraste com as dos Estados Unidos, encontram-se ainda completamente destruídas devido aos bombardeamentos alemães, e aguarda-se uma nova invasão, desta vez pelos aliados de há poucos meses. Que não se deverá fazer por terra, como no Verão de 1941, com os quatro milhões de soldados enviados por Hitler. Mas com a utilização da mesma bomba atómica empregue pelos americanos na destruição de duas cidades japonesas em Agosto de 1945.

Isto mesmo constata o escritor John Steinbeck, quando chega a Moscovo em Agosto de 1948, acompanhado do repórter fotográfico de origem húngara Robert Capa. Este, a viver nos Estados Unidos, ficou célebre pelos seus trabalhos na Guerra Civil de Espanha, que apareceram nos jornais e revistas de todo o mundo e ajudaram a ganhar apoios para a República espanhola depois da traição ao governo legítimo de Espanha por uma parte do exército encabeçada por Franco. John Steinbeck foi convidado pelo jornal Herald Tribune para esta visita à União Soviética, com o objectivo de tornar mais conhecido aquele país. E traça, 14 anos antes de receber o Prémio Nobel da Literatura, em 1962, neste Um Diário Russo, recentemente editado pela primeira vez em Portugal, um quadro detalhado do país que mais tinha sofrido na Segunda Guerra Mundial, com cerca de 40 milhões de mortos entre civis e militares e as suas principais cidades totalmente destruídas, como as fotografias de Robert Capa documentam.

Só um grande escritor, na altura com 46 anos, pode chegar a um país completamente desconhecido e devastado e fornecer-nos uma amostra viva da paisagem, das pessoas e das actividades a que se dedicam para o reconstruir, com o distanciamento necessário, não impeditivo de solidariedade com um povo sofredor, ao mesmo tempo criticando o sistema e as instituições, quando é caso disso. E toda a gente lhe diz que a América quer atacar a União Soviética, que já está destruída. A excepção é o antigo vice-presidente de Roosevelt, Henry Wallace, que terminou o seu mandato em 20 de Janeiro de 1945. Tendo sido preterido por Harry Truman para a vice-presidência, na Convenção dos Democratas, na última reeleição de Roosevelt. O Presidente morre e Truman sucede-lhe em 12 de Abril. Este, em Agosto, manda lançar as bombas atómicas sobre Hiroxima e Nagasáqui, essencialmente para mostrar aos soviéticos a força destruidora da nova arma. Ao contrário de Truman, Wallace era a favor de uma política de cooperação e isenta de ameaças militares em relação à União Soviética, como já era tradição das presidências de Roosevelt, quando este estabeleceu relações diplomáticas com aquele país, pela primeira vez, em 1933. Tendo-lhe fornecido um importante auxílio militar de um bilião de dólares a partir de 1941, que permitiu aos soviéticos derrotar os alemães em Leninegrado e Estalinegrado. As batalhas que tiveram uma influência decisiva na derrocada do III Reich. Por isso, os camponeses que Steinbeck e Capa visitam, na Ucrânia, não escondem a sua admiração por Roosevelt, que consideram um herói a nível mundial. O seu vice-presidente, Henry Wallace, por uma diferença de 86 dias, não se tornou no Presidente americano do pós-Segunda Guerra Mundial.

Nota: Pena que a editora Livros do Brasil não tenha conseguido uma melhor qualidade na reprodução das fotos de Robert Capa, que, apesar disso, conseguem ilustrar o que John Steinbeck vai exprimindo nas suas apreciações. Quanto às exposições a que assisti em Berlim nos curtos cinco dias que ali passei, nomeadamente sobre a ascensão de Hitler ao poder em 1933, ficará para outro artigo.

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