Poupança entre bruxas e touros

A actual taxa da poupança atingiu mínimos históricos, estando actualmente em 4,4% do rendimento disponível.

Em todos os dias há sempre um dia mundial, internacional ou nacional de qualquer coisa. A procura já excede a oferta dos 365 dias. A proliferação destes dias celebratórios tem até o mesmo efeito da inflação em relação à moeda: de tanto excesso, desvaloriza-se o valor e a forma superioriza-se ao conteúdo.

Vem isto a propósito do Dia Mundial da Poupança – não sei se em vias de extinção, não o dia, mas a poupança – que ocorre em 31 de Outubro. O curioso é que, de há anos a esta parte, este dia coincide com o Dia das Bruxas, mais conhecido pelo termo inglês Halloween, importado da tradição americana e britânica e, por sua vez, herdado dos druidas celtas.

O Halloween vai ganhando mais notoriedade e expressão, sobretudo nas camadas jovens da população. A sociedade de consumo agradece mais esta oportunidade a juntar à série infindável de dias disto ou daquilo que sempre movimentam bens, serviços e dinheiro. As cucurbitáceas abóboras sentir-se-ão socialmente promovidas, olhando, com algum desdém, para as flores (inchadas no preçário) que se depositam, no Dia dos Finados, junto dos que já partiram.

Em suma, convergem no dia 31 de Outubro o tímido elogio da poupança e o avassalador corrupio do consumo. A primeira que anda pelas ruas da amargura, o segundo que se estabeleceu urbi et orbi, mesmo que, para tal, se apele ao endividamento que mais não é que poupança negativa. Como na senha do Halloween, o dilema da actualidade é, alegoricamente, “doce ou travessura”...

O assunto da poupança – que nesta coluna já tratei – é um dos mais decisivos para o nosso futuro e para uma saudável equidade intergeracional, mas que, tal qual a demografia, é negligenciado pelas autoridades políticas e secundarizado pelos media.

O certo é que a actual taxa da poupança atingiu mínimos históricos, estando actualmente em 4,4% do rendimento disponível. Este valor é menos de metade da taxa média na União Europeia (12,1%), já de si significativamente diminuta. A nossa taxa que, outrora, já atingiu valores bem superiores a 20%, tem vindo a cair ano após ano. Era de 11% em 2009, e nos últimos três anos desceu de 5,3% para 5,1% e agora 4,4%, ainda que, em parte, resulte da fase de recuperação de decisões adiadas quanto à aquisição de bens duradouros, como automóveis e electrodomésticos.

Vários factores têm contribuído para esta preocupante tendência. Refiro-me, em primeiro lugar, à escassa educação para a poupança, que tende mesmo a ser irrelevante nas gerações mais novas, bem como à débil cultura previdencial, particularmente preocupante num tempo em que as expectativas quanto à evolução da Segurança Social e do seu sistema de pensões são mais baixas.

Também a política de expansão monetária protagonizada pelo Banco Central Europeu, que tem induzido uma ideia de “dinheiro fácil”, está a estrangular o aforro das famílias que praticamente tem uma remuneração igual ou próxima de zero, seja no sistema bancário, seja agora mais acentuadamente em produtos de poupança disponibilizados pelo Tesouro (que somam já 15% do total da dívida pública). A taxa média de juro para depósitos de um ano é, actualmente, de 0,1%, antes de impostos!

Como afirmou o SE do Tesouro Mourinho Félix, “uma baixa taxa de poupança deixa as famílias mais vulneráveis para os chamados ´dias chuvosos´, seja por uma redução dos rendimentos, como se verifica em situações de desemprego, doença ou na idade da reforma, seja por um aumento das suas despesas”.

Acontece, porém, que o próprio Estado tem contribuído para desvalorizar o valor económico, social e familiar do aforro. Basta verificar o agravamento em 40% (oito pontos percentuais) da taxa liberatória do IRS sobre depósitos e obrigações que era de 20% há dez anos, mas que foi sujeita a quatro aumentos (para 21,5%, depois para 25%, a seguir para 26,5%, fixando-se em 28%), sem que tenha havido uma contestação política e cívica à altura, como acontece com aspectos orçamentais bem menos determinantes.

Acresce que com taxas de remuneração da poupança bem inferiores à taxa de inflação, o IRS acaba por, em termos reais, atingir o próprio capital, assim se transformando parcialmente um imposto sobre o rendimento num tributo sobre o próprio património.

Como pude ler num excelente trabalho na revista da Deco Proteste Investe, trata-se de uma tributação que é a mais alta na Europa e que incide cegamente sobre as poupanças, independentemente do seu valor e da sua natureza. Bem superior à taxa na vizinha Espanha (19%) e sem paralelo com a tributação belga que isenta de imposto os juros das poupanças até um valor anual de 960 euros.

Perante um OE 2019 que praticamente ignora a poupança, bom seria que este tema fosse recuperado na discussão na especialidade, devidamente escrutinado e votado de modo a reduzir este brutal contra-incentivo ao aforro, em vez de assanhadas “iniciativas civilizacionais”, com tourada ou sem ela, do solitário PAN e de certa esquerda (mas não toda), armados em polícias talibã de gostos e costumes. Ou será que quem poupa nem um touro vale?

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