O mundo de Jonah Freeman e Justin Lowe é melhor do que o nosso

Entra-se em Cenário na Sombra, uma série de subculturas imaginárias dispostas numa instalação imersiva, e já não se sai de lá. Os artistas nova-iorquinos Jonah Freeman e Justin Lowe sugerem uma realidade alternativa na exposição que o MAAT, em Lisboa, inaugura esta quarta-feira.

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O ambiente dos The Fort, tecno-hippies que utilizam computadores extremamente sofisticados e ao mesmo tempo apostam na reciclagem DR
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Existem formas diferentes de lidar com a desordem e os impasses sociopolíticos do nosso tempo. O desejo de operar um novo começo pode ser uma delas. Linguistic Ground Zero, novo projecto de João Louro, com curadoria do espanhol David G. Torres, reflecte esse desejo: trata-se de uma instalação que relaciona a destruição física (através da reprodução em tamanho real da primeira bomba atómica lançada sobre Hiroxima) com a destruição simbólica, corporizada pelas diferentes vanguardas artísticas. Como se sociedade e arte, em alturas liminares, partilhassem o fascínio da destruição que, paradoxalmente, pode traduzir-se em vontade de renovação.

Outra forma de lidar com a desordem do mundo é forjar uma realidade paralela. É a estratégia de Cenário na Sombra, instalação imersiva da dupla Jonah Freeman e Justin Lowe, com curadoria de Pedro Gadanho e Rita Marques, que tal como o projecto de João Louro tem  a sua inauguração esta quarta-feira no Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia (MAAT), em Lisboa. Uma terceira exposição, Haus Wittgenstein – Arte, Arquitectura & Filosofia, com curadoria de Nuno Crespo, abre também as suas portas esta quarta-feira: parte dos 90 anos da Haus Wittgeinstein, projecto corporizado em Viena entre 1926 e 1928 que deu origem a uma casa na qual se cruzaram arte, arquitectura e filosofia. O jogo de conflitos e de relações que ali se gerou inspirou artistas como Ângela Ferreira, Vasco Barata, Horácio Frutuoso, Ricardo Carvalho, Leonor Antunes, John Baldessari, Bruce Nauman ou Pedro Cabrita Reis, cujas obras e participações entram num diálogo crítico com aquele objecto arquitectónico.  

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Logo à entrada, o visitante é transportado para um cenário vitoriano, que Jonah Freeman descreve como sendo o ecossistema dos The Shade

Cabe à dupla nova-iorquina, e a Cenário na Sombra, inaugurar o programa Vídeo Room, uma nova série de exposições do MAAT que explorarão o conceito de vídeo expandido, transcendendo a mera projecção tradicional e articulando a imagem em movimento com outras matérias artísticas. É que além de uma instalação, com diversas atmosferas concebidas a partir de quadros arquitectónicos ou teatrais, este é também um projecto cinematográfico, com uma sala escura projectando três objectos fílmicos.

A música desempenha aí um papel relevante, tendo sido desenvolvida por Jennifer Herrema, a artista que é também membro do grupo rock Royal Trux, e que convidou uma série de cúmplices bem conhecidos dos melómanos (Hot Chip, Devendra Banhart, MGMT, Gang Gang Dance, Kurt Vile, Primal Scream, White Magic, Sun Araw, Red Crayola) a proporcionarem uma banda sonora para o projecto. Vai da electrónica mais exploratória ao rock dissonante, passando por momentos ambientalistas.

“Isto é tanto um filme como uma instalação onde acabamos por representar diferentes modos de existir, diversas formas de estar no mundo, tudo a partir de um universo ficcional criado por nós mas inspirado em The Year 2000, uma ideia desenvolvida nos anos 60 por Hermann Kahn, que imaginou uma megacidade localizada algures ao longo da costa da Califórnia, entre San Diego e São Francisco”, diz ao PÚBLICO Jonah Freeman.

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“Isto é tanto um filme como uma instalação onde acabamos por representar diferentes modos de existir, diversas formas de estar no mundo, tudo a partir de um universo ficcional criado por nós mas inspirado em The Year 2000"

Uma ficção criada a partir de uma ficção, materializada numa série de salas, representando subculturas imaginárias, como explicita Justin Lowe: “Pegámos nessa ficção e demos-lhe corpo, criando um domínio paralelo focado em várias subculturas juvenis. Cada sala acaba por corresponder a um habitat diferente. No fundo, quisemos confrontar estas culturas minoritárias e a sociedade como um todo, ou, se quisermos, aquilo que constitui o pensamento dominante à nossa volta.”

Labirintos

Até 25 de Fevereiro, Cenário na Sombra convida os visitantes a entrarem num território multiespacial, distribuído por pequenos compartimentos. Um labirinto de subculturas utópicas: Bamboo Union, King Gordon, Disco Creeps ou The Shade. Por vezes, os espaços interiores mais parecem edifícios em ruínas ou montagens inacabadas, com muito de divertido, misterioso ou bizarro, numa mistura de familiaridade e estranheza: à nossa frente, pinturas avulsas, objectos, computadores, cassetes VHS, frascos de laboratório. “Muitas daquelas coisas são apenas os detritos omnipresentes que alimentam as nossas casas e cidades superlotadas de excessos”, afirma Jonah Freeman, “e são diferentes de sala para sala, porque existe essa necessidade de projectarmos as nossas identidades em certas actividades, consumos, estilos de vida, roupas ou drogas”.

É a quarta vez que a dupla revela esta obra. A primeira foi em Nova Iorque e a última na Kunsthal Charlottenborg de Copenhaga. Lisboa é a segunda cidade europeia a experienciá-la. “Todas as reincarnações desta exposição são diferentes e iguais em simultâneo”, explicita Jonah Freeman. “Os muitos materiais que a compõem têm viajado de lugar para lugar, mas acabamos sempre por utilizar também materiais locais que vamos adaptando. Em Istambul, por exemplo, criámos mesmo uma sala nova. Em Lisboa o espaço total é mais pequeno do que aqueles que temos vindo a ocupar, mas todas as referências que exploramos estão aqui.”

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Desde 2007 que a dupla tem vindo a colaborar em projectos que misturam narrativas históricas ou ficcionais, e que depois se traduzem em instalações imersivas, situações simultaneamente arquitectónicas e cinematográficas

Do passado e do futuro

Desde 2007 que a dupla tem vindo a colaborar em projectos que misturam narrativas históricas ou ficcionais, e que depois se traduzem em instalações imersivas, situações simultaneamente arquitectónicas e cinematográficas, que por norma acabam por recriar visões distópicas ou episódios psicotrópicos. “Porquê? Creio que sempre nos interessou essa ideia de criar uma realidade alternativa, algo que nos defenda de uma realidade hostil e que ao mesmo tempo possa subsistir como reduto de liberdade, onde se ensaiam e expressam outras formas de ser e existir.”

Vivemos numa era de hiper-representação e de micropropagação viral. É cada vez mais difícil apreender subculturas universais e estáveis. Distinguir condutas, identidades grupais ou estilos de vida associados a criações ou consumos, da música à moda, passando pelo cinema ou pela tecnologia, parece cada vez mais impenetrável, sugerimos. “É verdade, e talvez por isso mais do que reproduzir o presente nos interesse uma situação ambivalente, onde tanto recorremos à memória como a uma possível visão do futuro”, esclarece Justin Lowe. “Aquilo que acabamos por fazer é uma espécie de reorganização de diferentes subculturas a partir da proliferação de coisas que aconteceram no passado e que ainda estarão para acontecer no futuro. É tudo ficcional, mas é claro que é baseado em narrativas e detalhes do mundo em que vivemos.”

Logo à entrada, o visitante é transportado para um cenário vitoriano, que Jonah Freeman descreve como sendo o ecossistema dos The Shade, “um grupo de intelectuais revolucionários, na linha dos situacionistas”. A seguir, somos conduzidos para o meio ambiente dos The Fort, “tecno-hippies que utilizam computadores extremamente sofisticados, mas que ao mesmo tempo apostam na reciclagem, o que nada tem de improvável hoje em dia, o mesmo sucedendo com outra comunidade ligada ao tráfico de plantas psicotrópicas”, continua, nomeando as subculturas postas em cena em Cenário na Sombra, sempre situadas entre a realidade e a ficção. “No fim de contas, este é o nosso mundo, apenas um pouco diferente”, conclui entre risos.

É isso. É o nosso mundo, mas quando se entra por aquela porta azulada é como se estivéssemos a olhar para ele pela primeira vez.

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