A coisa mais assustadora que ouvi na Noite das Bruxas

Os estrangeiros, como ameaça, lá vão ter de cumprir com o seu papel histórico de serem ameaçadores para que os americanos se possam unir.

Province, Rhode Island, EUA. — Esta semana tivemos a Noite das Bruxas, Halloween, e aqui nos EUA onde levam a celebração a sério vi mulheres sem cabeça, muitos frankesteins e até um par de mãos de um morto-vivo a tentar sair da cova. Mas a coisa mais assustadora não vi, ouvi. E não foi na rua, mas na televisão. E não foi uma coisa para assustar, mas antes dita com boa intenção. E foi por isso mesmo que foi assustadora.

Num dos canais de notícias que por aqui pululam com debates e comentadores a toda a hora discutia-se a polarização da sociedade norte-americana. Ou seja, debatia-se o debate. Em particular, tentava debater-se com um nível um bocadinho mais alto porque é que o nível do debate é em geral tão baixo. E, em consequência, discutia-se Trump. Trump insinua que George Soros é o culpado de haver uma caravana de migrantes e refugiados a tentar chegar aos EUA. Um homem mata onze pessoas numa sinagoga porque acha que os culpados por haver demasiados imigrantes nos EUA é daqueles que são, como Soros, judeus (nota: o assassino era crítico de Trump por não ser suficientemente anti-imigração e porventura por não ser anti-semita). Trump acha que os jornalistas que o criticam são “inimigos” do povo. Um homem com a carrinha cheia de autocolantes de Trump e outros com os seus adversários na mira de uma espingarda manda mais de dez envelopes-bomba aos adversários de Trump, incluindo ex-presidentes, primeiras-damas e candidatos à presidência, e jornalistas. O debate consistia em saber se Trump poderia fazer ou dizer algo para evitar que a polarização levasse a mais violência.

Havia no debate comentadores anti-Trump e pró-Trump. Os anti-Trump achavam que o presidente polarizava o país de propósito sem se incomodar com as consequências. Os pró-Trump argumentavam que a polarização já existia antes de Trump e que não cabia a ele só resolvê-la. O debate era cordato. E foi aí que um deles disse: “infelizmente vai ser muito difícil resolver o problema da polarização e acho mesmo que o problema só vai acabar quando houver uma ameaça externa contra o nosso país”.

E pronto. Aí está a coisa mais assustadora que ouvi este Halloween. Não porque tenha sido dita em tom de ameaça, mas porque foi dito em tom de lamento, quase como quem encolhe os ombros e diz que “lá vai ter de ser” haver uma ameaça externa para resolver o problema americano de os americanos terem decidido polarizar-se e o presidente americano estar pouco disposto a deixar de polarizar o país ainda mais. Os estrangeiros, esses sim como ameaça, lá vão ter de cumprir com o seu papel histórico de serem ameaçadores para que os americanos se possam unir.

Como já disse, o senhor que disse a frase parecia perfeitamente bem intencionado. E além disso, não estava a dizer nada de original. É quase uma banalidade notar que o destino do nacionalismo — doutrina que o presidente Trump reivindica aos berros do palanque — é acabar no conflito entre nações. Quando há uma fornada de líderes a convencer os seus povos que a o princípio organizador da política é “o (inserir aqui nome de país) acima de todos” vai haver um problema quando o país X “acima de todos” tiver um conflito com o país Y que também é “acima de todos”. 

Mas a razão pela qual o que disse o tal senhor foi iluminador é que me revelou naquele momento um caminho explicativo através do qual o conflito entre nacionalismos não é só uma possibilidade, mas uma necessidade. E, enquanto tal, virtualmente inevitável.

Reparem: o nacionalista alega amar a nação, mas não sei se notaram que ele gosta de muito pouca gente dentro da nação. O nacionalista não gosta da oposição. Dos que parecem estrangeiros. Dos que gostam do estrangeiro. Dos esquerdistas ou dos socialistas ou dos liberais ou dos cosmopolitas ou dos ecologistas ou de todos os que se costumem-se lembrar que há um mundo lá fora. Também costuma não gostar dos LGBT, dos intelectuais, dos sindicalistas, das religiões minoritárias, das ONGs, dos artistas, dos judeus e dos muçulmanos, dos moderados e dos radicais, dos miseráveis e dos milionários (bem, só de alguns milionários), e na verdade nem a classe média nem a alta nem a baixa são muito de confiar. Excluindo os crentes que lhe aparecem nos comícios e os que o defendem nas redes sociais (e mesmo entre esses boa parte são autómatos ou assalariados de governos estrangeiros), é muita gente para não gostar.

Por outro lado, o nacionalista tem necessidade de ser amado, de ser adorado até. E a certa altura, principalmente se houver eleições (há na próxima terça-feira) e se ele as perder, o nacionalista vai precisar de fazer o que promete e unir a nação.

Mas como? Como unir a nação, se ele a dividiu tanto até agora? Bem, é aí que entra a ameaça externa. A ameaça externa, se houver, há de salvar-nos! E se não houver, inventa-se.

E é por isso que devemos ter medo, muito medo.

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