Ainda o Roubado: o politicamente correcto já chegou ao vinho

O mundo não está para irreverentes, nem para provocadores (só se se chamarem Banksy), mas é porque o mundo, incluindo o dos vinhos, está cada vez mais puritano, higiénico, populista e cobarde.

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Mário Lopes Pereira

O espírito doentio do politicamente correcto já chegou ao vinho português. Não é propriamente uma surpresa. O que surpreende é constatarmos que os mais puritanos são, por vezes, produtores prolixos na manipulação das redes sociais e profissionais da crítica e da escrita sobre vinhos.

As reacções ao último Elogio do vinho, sobre o ressurgimento das periferias do vinho e o exemplo de quatro jovens produtores que estão a dinamizar o planalto de Alijó-Favaios, no Douro, são bem elucidativas. O texto começa com a história do Roubado, um vinho que outros jovens do mesmo planalto fizeram, a partir de uvas “roubadas” em várias quintas da região (uma caixa por quinta, no máximo). Fizeram-no não para ganhar dinheiro, mas por pura irreverência juvenil e gosto pelo vinho. João Paulo Martins, o mais renomado crítico português, foi um dos primeiros a reagir no Facebook: “(…) Roubo é roubo, seja grande ou pequeno. (…).O ressurgimento de zonas esquecidas e de vinhas perdidas e o sangue novo são sempre louváveis, mas vamos lá ter mais juízo nas avaliações dos méritos de quem infringe a lei.” Hugo Mendes, enólogo e produtor na zona de Lisboa e conhecido no meio pela forma divertida e, muitas vezes, desassombrada, pela violência das suas críticas, como usa as redes sociais, alinhou pelo mesmo discurso e foi ao ponto de quantificar o “desfalque”, com a premissa que este deve ser calculado não a partir “das uvas não colhidas e sim no produto não vendido”. Feitas as contas, a partir de um preço de venda de 10 euros a garrafa, cada caixa de uvas “roubadas” implicou um prejuízo para o produtor “roubado” de 126 euros. Hugo Mendes até foi bonzinho. Uma vez que algumas das uvas roubadas vieram de quintas famosas, como a Noval, por exemplo, onde são feitos alguns dos melhores vinhos do Porto, podia fixar o preço por garrafa em 100, 200 ou 400 euros. Mais: como no vinho cada um fixa o preço que quer, no limite cada caixa de uvas pode ter implicado um prejuízo de 10 mil, 100 mil ou, vá lá, um milhão de euros!

Hugo Mendes não se ficou pelas contas. Referindo-se a mim, acrescentou: “Sei que o espaço é de opinião, mas convenhamos, glorificar um acto criminoso está mais próximo da propaganda do que do jornalismo, mesmo o de opinião.”

Crime, disseram eles. Eu, talvez porque seja naïf e provinciano (nasci e vivo na tal província), vi antes uma brincadeira de juventude, como tantas que todos nós fizemos na nossa vida. Quem nunca roubou fruta sem ter fome? Quantos de nós não pilharam galinhas para uma tainada de amigos? Roubo é roubo, dizem os puritanos, os defensores da lei. Os mesmos que depois se ofendem quando vêem um juiz mandar para a cadeia alguém por roubar um sumo num supermercado. Um roubo é um roubo, insistem, como se a natureza e a dimensão do objecto furtado não fizessem diferença.

Quem é produtor sabe que uma caixa de uvas não tem qualquer significado. Eu seria o primeiro a denunciar e a indignar-me com o Roubado se se tratasse um vinho feito com interesses comerciais. Alguns dos mesmos jovens que alinharam na brincadeira gastam muito mais dinheiro em vinho para fins de beneficência. Não encarnam sequer o espírito Zé do Telhado ou Robin dos Bosques, de roubar aos ricos para distribuir pelos pobres. Alguns deles já são ricos, também têm vinhas e também “roubam” uvas a si próprios e aos pais para incorporar no Roubado.

Classificar esta brincadeira de roubo, catalogando os seus autores de criminosos e acusando-me de estar a glorificar o crime, é manifestamente um exagero. Olhar para a vida com a mesma frieza de um cobrador do fraque ou de um funcionário manga de alpaca zeloso do cumprimento da lei, como se esta fosse cega, é pobre e perigoso. É desta forma de ver o mundo que o populismo se alimenta: criminoso tem que pagar!

Eu julgava que se podia ser romântico no mundo do vinho. As dificuldades financeiras do negócio já me mostraram que isso é quase impossível. Ainda assim, pensava — e continuo a pensar — que o lado bom do vinho compensa todas essas dificuldades, que se pode ser feliz com pouco. Esse lado bom do vinho é o prazer da criação, a incerteza, a partilha de vinhos e experiências, a solidariedade, a possibilidade de conhecer muita gente e de viajar. É esta dimensão que se deve valorizar, não a mesquinhez, a inveja, a vaidade, a hipocrisia, o medo e a bajulice que cada vez mais se sentem no mundo do vinho. Para se estar bem no sector, em harmonia com Deus e o diabo, é preciso pontuar bem os vinhos, encher os produtores de elogios, sobretudo os mais poderosos e icónicos, endeusar os dirigentes das comissões vitivinícolas (não é o caso de João Paulo Martins, diga-se). Se pontuamos mal, não sabemos provar. Se pontuamos bem, já somos credíveis e até nos agradecem publicamente. O que está a dar é falar bem, ser bonzinho e patriota. Usar a crítica, elemento fundamental de um estado democrático, é coisa de velho do Restelo, de invejoso, de interessado. Sempre valorizei a máxima jornalística do “good news no news”. A essência do jornalismo é denunciar e criticar o que está mal. Por vezes, é-se injusto. Mas é sempre preferível poder ser crítico e correr o risco de, por vezes, ser injusto do que não poder sequer criticar. Nesse caso, perdemos todos.

Claro que também se devem valorizar e publicitar os bons exemplos. O último Elogio do vinho era sobre um bom exemplo. Por isso, aproveito para repetir a vénia aos jovens que estão a fazer belos vinhos nas periferias do país. Aos “criminosos” do Roubado: não tenham medo (também não abusem. Foi engraçado e já chega). O mundo não está para irreverentes, nem para provocadores (só se se chamarem Banksy), mas é porque o mundo (incluindo o dos vinhos) está cada vez mais puritano, higiénico, populista e cobarde que todos precisamos de mais jovens com o vosso espírito.

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