Regresso a Amoroso e a outras jóias brasileiras

A poucos dias de uma eleição que de amores pouco ou nada tem, saúde-se a notícia da reedição, no Brasil, do disco Amoroso de João Gilberto.

A poucos dias de uma eleição que de amores pouco ou nada tem, saúde-se a notícia, feliz (se não nos salvar a música, o que nos salvará?) da reedição, no Brasil, do disco Amoroso de João Gilberto. Gravado nos Estados Unidos, onde João então vivia, com orquestrações de Claus Ogerman, Amoroso inclui versões magnificamente joãogilbertianas de canções de Gershwin (‘S wonderful) e Tom Jobim (a maioria: Wave, Caminhos cruzados, Triste e Zingaro, esta com letra de Chico Buarque), mas também da italiana Estate, da mexicana Besame mucho ou da brasileira Tin tin por tin tin, de Haroldo Barbosa e Geraldo Jaques. Uma festa para os ouvidos, num “maravilhoso disco”, como o definiu em declarações recentes ao Estadão, o musicólogo Zuza Homem de Mello, que conviveu intensamente com João Gilberto no período das gravações (em Nova Iorque, em 1976) e apresentou o espectáculo onde o disco foi estreado, no Theatro Municipal de São Paulo, em Março de 1978. “Ele estava dócil, amoroso. O título do disco é perfeito para definir João Gilberto.”

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Pois Amoroso, que ainda pode ser encontrado nas lojas portuguesas numa edição em CD, a preço de saldo (quem não o tem que aproveite) ressurge agora no mercado brasileiro no formato original de LP, em vinil, remasterizado a partir da master da edição de 1977, com capa e contracapa replicando as das primeiras edições. “Amoroso é João Gilberto em toda a sua glória de inventor e de mestre de um estilo inovador de cantar e de tocar violão”, disse, também ao Estadão, o compositor, jornalista e crítico musical Nelson Motta.

Enquanto isto sucede no Brasil, vão surgindo por Portugal reedições de obras de relevo na música brasileira, na sua maioria esgotadas há décadas. Importados dos EUA, onde foram prensados, devido ao empenhamento da Distrijazz, tais discos preenchem lacunas no contacto com o trabalho de vários músicos. De Luiz Gonzaga (1912-1989), por exemplo, chega-nos o seu primeiro álbum, de 1955, A História do Nordeste, junto com outro dois, O Nordeste Na Voz de Luiz Gonzaga e Lua, reunidos num CD só. Tal como de Dorival Caymmi (1914-2008) passamos a dispor dos dois primeiros discos, também num só CD, os imperdíveis Canções Praieiras (1954) e Caymmi e Seu Violão (1959), juntos com excertos do LP Sambas de Caymmi (1955), este gravado com orquestra. Com idêntica lógica (os dois primeiros LP num só CD) surgem-nos ainda o génio do violão Baden Powell (1937-2000) ou um rosto marcante da bossa-nova, Carlos Lyra (n. 1939). Há, também, reedições de discos avulsos, sem “misturas”. Como Mustang côr de Sangue (1969), de Marcos Valle; ou Quarteto Em Cy (1972), do grupo homónimo, então já não formado, como em 1964, pelas irmãs Cyva, Cybele, Cynara e Cylene (daí o Cy), mas apenas por duas delas, Cyva e Cynara, substituídas as outras por Soninha e Dorinha.

E há ainda Jorge Ben (hoje Benjor), com dois títulos de relevo, Jorge Ben (1969) e o extraordinário A Tábua da Esmeralda (1974); Gal Costa com Legal (1970), um disco com capa e contracapa do artista plástico Hélio Oiticica, onde ela ainda oscilava entre o tom cristalino que viria a ser dominante na sua voz e a rouquidão vinda do rock e dos blues; e Caetano Veloso com três discos essenciais (e há tantos outros): Caetano Veloso, o de Tropicália (1967); Transa, admirável obra-prima (1972); e Qualquer Coisa (1975).

Estes discos são uma pequena parte do muito que, ao longo dos anos, nos foi ensinando a amar o Brasil e a entender a sua cultura. Mesmo que amanhã surjam depreciados, sobreviverão. Porque o que é mais profundo sobrevive sempre, apesar dos ditames da ignorância ou dos ódios mais inflamados. O regresso de Amoroso é, nestes dias, já um sinal de resistência.

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