Seis séculos de música para órgão recapitulados na Madeira

Depois das empolgantes prestações de Matthias Havinga e Vincent Dubois no passado fim-de-semana, o Festival de Órgão da Madeira dará ainda a ouvir raridades como as mais antigas obras para órgão e a música da biblioteca de D. João IV.

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A Igreja do Colégio dos Jesuítas dispõe de dois órgãos, ambos posteriores à época da construção da igreja DR

Foi com a belíssima Igreja de São João Evangelista, mais conhecida como Igreja do Colégio dos Jesuítas, completamente cheia que se deu início na passada sexta-feira no Funchal ao nono Festival de Órgão da Madeira. Um recital a solo do holandês Matthias Havinga, inteiramente preenchido com música de J. S. Bach, propôs um programa aliciante, dada a variedade e a genialidade da produção para órgão do grande compositor alemão, aqui interpretada por um reconhecido especialista neste repertório que não só evidenciou brilhantismo técnico como transmitiu com impecável clareza o tecido polifónico de todas as composições. Foi o cartão de visita para uma série de concertos que se prolonga até 28 de Outubro e que percorre “Seis séculos de música para órgão”, unindo-se às comemorações dos 600 anos da descoberta das ilhas da Madeira e de Porto Santo, promovidas pela Secretaria Regional do Turismo e Cultura da Região Autónoma da Madeira.

Edificada no século XVII e considerada um dos monumentos portugueses emblemáticos da transição do maneirismo para o barroco, a Igreja do Colégio constitui um cenário inspirador para um festival de música, contando ainda com a vantagem de ter uma óptima acústica. Dispõe actualmente de dois órgãos, mas nenhum deles data da época da construção da igreja: o órgão de coro, um instrumento de armário construído por António Machado e Cerveira no último quartel do século XVIII e inicialmente destinado à Sé do Funchal (restaurado por Dinarte Machado em 2015), e o grande órgão do coro alto, concebido de raiz por Dinarte Machado e inaugurado em 2008 por Ton Koopman. Matthias Havinga usou os dois órgãos no concerto de abertura. Para o instrumento de Machado e Cerveira (sem pedaleira, de acordo com a tradição ibérica), escolheu dois andamentos da Suite Inglesa nº3 (Prelude e Gavotte); no grande órgão interpretou algumas das mais extraordinárias composições de Bach. Destacaram-se a Sonata em Trio BWV 527 (obra que se distingue pela elegância das ideias musicais mas também pelas exigências virtuosísticas que coloca ao intérprete, nomeadamente no uso da pedaleira) e o monumental conjunto formado pelo Prelúdio e Fuga em Mi bemol Maior, BWV 552. Mas também no Prelúdio e Fuga BWV 545 e nos Prelúdios de Coral BWV 657 e BWV 652 Havinga teve prestações de alto nível que colocaram ao mesmo tempo em evidência as potencialidades tímbricas e a variedade de registos do instrumento.

O recital inaugural assinalava também os dez anos do grande órgão da Igreja do Colégio, o instrumento que proporcionou o lançamento do festival. “O Governo Regional da Madeira iniciou em 1990 uma política de restauro dos órgãos históricos que abriu caminho a esta iniciativa”, explicou ao PÚBLICO o organista e director artístico do festival João Vaz. “Em 1996 concluiu-se o restauro do órgão da Sé e a partir daí houve uma política continuada. A certa altura já havia um considerável número de instrumentos em funcionamento e um inventário de todo o património organístico da Madeira, surgindo então a ideia de fazer um festival.” Sucede porém que as características dos órgãos existentes (dimensões reduzidas, ausência de pedaleira, conjunto de registo limitado) não permitiam abordar todos os repertórios. “Na sua maioria os órgãos da Madeira são ingleses e foram trazidos no século XIX, tendo sobrevivido poucos instrumentos anteriores”, diz João Vaz, justificando "a aposta num órgão novo" em que se pudesse tocar Bach e outros repertórios.

Este ano, a coincidência com os 600 anos da Madeira e de Porto Santo levou João Vaz a tentar acompanhar esses seis séculos de história através da música para órgão. “Cada concerto é dedicado a um século específico. Nessa pespectiva escolhi artistas especializados nas diferentes épocas e programas adaptados aos instrumentos onde iriam tocar. Há casos muito evidentes: por exemplo, se temos um órgão inglês do século XIX, faz sentido tocar música inglesa do século XIX.” Este desafio foi lançado ao organista Sérgio Silva e à soprano Cecília Rodrigues, que se apresentaram no dia 20 na Igreja de Nossa Senhora do Porto da Cruz (Machico) e três dias depois no Funchal. O repertório adequado a esse contexto não faz habitualmente parte dos programas de concerto, pelo que Sérgio Silva reconhece que “a tarefa não foi fácil mas acabou por ser gratificante”. Árias das oratórias de Mendelssohn Paulus e Elias, que tiveram grande sucesso em Inglaterra, peças para órgão e trechos vocais de Samuel Wesley, Arthur Sulivan e Edward Elgar (neste último caso com destaque para as Vespers Voluntaries op. 14, os Motetes op. 2 e o excerto da oratória The Light of Life, op. 29) acabaram por proporcionar  um programa de audição muito agradável que cativou o público. Para tal contribuíram a belíssima voz e a sensibilidade expressiva de Cecília Rodrigues, uma jovem cantora cuja carreira convém seguir com atenção, e a solidez do desempenho de Sérgio Silva, tanto a solo como na qualidade acompanhador atento. Muito menos habitual do que os duos de voz e piano no âmbito da nossa actual vida musical, a combinação entre voz solista e órgão tem um imenso potencial que vale a pena explorar.

No que diz respeito à música mais antiga, João Vaz convidou Catalina Vicens, especialista nos instrumentos de tecla da Idade Média e do Renascimento, que irá tocar obras dos primórdios da literatura para órgão e algumas peças contemporâneas num organetto (ou órgão portativo), que trará consigo e também usar os dois instrumentos mais pequenos da ilha (dias 25 e 26): os órgãos do Convento do Bom Jesus do Funchal e da Igreja da Ponta do Sol, construídos no século XVIII por Leandro José da Cunha e João da Cunha. O uso do órgão portativo permitirá também levar pela primeira vez o festival a Porto Santo, no dia 27. A música do século XVI estará representada por Bruno Forst, que dedicará o seu recital à Arte de Tanger (1540), de Gonçalo de Baena, a mais antiga colectânea de obras para tecla impressa na Península Ibérica; e o século XVII conta com a intervenção do organista e cravista Claudio Astronio com um programa de música italiana que encerrará o festival. Obras compostas sobre motivos gregorianos por compositores como Caroline Charrière, Ignacio Rodrigues, Rodrigo Cardoso, João Pedro d’Alvarenga, João Vaz e Sérgio Silva, entre outros, na interpretação do grupo vocal Lusiovoce, representarão o século XXI. “Pretendemos continuar a apostar em novas obras, pelo que está prevista a encomenda de uma grande composição para coro e órgão a um compositor madeirense comemorativa dos 600 anos da Madeira, para ser estreada no festival de órgão de 2019”, revelou João Vaz. Trata-se de Pedro Macedo Camacho, compositor que conta no seu percurso com o Requiem Inês de Castro e bandas-sonoras para videojogos como Star Citizen.

Órgãos que cantam

Um dos concertos que despertava mais expectativas ocorreu no domingo, novamente na Igreja do Colégio, e contou com a actuação do prestigiado organista francês Vincent Dubois, um dos titulares do órgão da Catedral de Notre-Dame de Paris. O prato forte era o Concerto para órgão, de Francis Poulenc, com a Orquestra Clássica da Madeira, sob a direcção de Rui Pinheiro, mas Dubois tocou também a solo o Prélude et fugue sur le nom d’Alain, de Maurice Duruflé (que colaborou com Poulenc na registração do concerto), e o Allegro deciso do poema sinfónico Evocation, de Marcel Dupré. Do programa fazia parte ainda a Suite III, para cordas, das Antiche danze ed arie per liuto, de Respighi, mais um testemunho do interesse que a música antiga despertou entre os compositores dos inícios do século XX. Se nas duas primeiras peças a solo, de grande complexidade de escrita, Vincent Dubois confirmou a sua reputação como intérprete de enormes recursos técnicos e expressivos, pode dizer-se que no Concerto de Poulenc foi avassalador. A sua agilidade técnica, a energia rítmica, a arte de frasear e a maneira como geriu num fluxo ininterrupto os contrastes da obra — entre as passagens mais introspectivas de sedutor colorido e as secções rápidas de grande efeito — levaram a assistência ao rubro. Também a Orquestra da Madeira, salvo alguns pormenores a precisar de mais apuro, correspondeu bem ao desafio.

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Vincent Dubois é actualmente um dos titulares do órgão da Catedral de Notre-Dame de Paris DR

Numa breve conversa com o PÚBLICO, o próprio Dubois falou dos desafios da interpretação desta obra, que exerce sempre grande fascínio entre os intérpretes e o público. “Um dos problemas é a mise en place da orquestra e do órgão. Aqui o órgão está na tribuna ao fundo da igreja e a orquestra toca em baixo no lado oposto, pelo que a sincronização não é fácil”. Como organista está de costas para a orquestra, recorreu-se a auxílio de uma câmara e da tecnologia sonora para ajudar. No entanto, graças à acústica favorável da igreja, a audição da orquestra é muito clara, ressalvou Dubois. O organista adora esta “obra magnífica”, o único concerto que existe para órgão, orquestra de cordas e timbales, e destaca “a inspiração dos andamentos lentos”, bem como passagens muito imaginativas como “o último solo, no qual as violetas dobram a parte do órgão e harmonizam a melodia”.

Sobre o órgão da Igreja do Colégio, Dubois diz que, “apesar de não ser um instrumento tipicamente francês, tem as cores tímbricas que permitem tocar música neo-clássica”. Este organista ainda jovem, mas já com uma carreira internacional brilhante, tem tocado em órgãos de várias épocas um pouco por todo o mundo. As suas preferências não têm contudo a ver com a estética e a época dos instrumentos, mas com outras qualidades. “O que mais me atrai é ter um instrumento que cante, que seja expressivo e rico. Isto significa que a maneira como vai soar vai ser musical e não seca. Não importa a estética, pode ser um órgão do barroco espanhol, do barroco alemão ou romântico sinfónico, o que interessa é que o órgão cante!” Nesse sentido, os instrumentos que mais o impressionaram foram o da Catedral de Poitiers, o grande órgão sinfónico de Filadélfia (Wanamaker Organ), o órgão da Catedral de Dresden e o órgão da St. Laurenskerk de Alkmaar, na Holanda.

Cornetas e sacabuxas

O nono Festival de Órgão da Madeira prossegue esta quarta-feira, às 21h30, na Igreja de São Martinho do Funchal, com o recém-criado agrupamento Cornetas e Sacabuxas de Lisboa e com o organista João Vaz, num programa constituído por obras que fizeram parte da monumental biblioteca musical de D. João IV. Apesar de ter sido destruída pelo Terramoto de 1755, o catálogo parcial de 1649 permite verificar como o rei restaurador, ele próprio compositor e teórico, reuniu obras das principais figuras da vida musical europeia.

Tiago Simas Freire, intérprete de corneta histórica e director musical do ensemble Capella Sanctae Crucis, decidiu “criar um colectivo dedicado a reanimar esses instrumentos de sopro hoje raros que, formando uma só família, foram nos séculos XVI e XVII símbolo de majestosidade cerimonial”. Refere que “as cornetas e sacabuxas têm uma visibilidade mínima no panorama artístico português” e lamenta que não integrem o currículo do ensino especializado. O músico tem leccionado pontualmente cursos no Porto, em Lisboa, Coimbra e Aveiro, e salienta a iniciativa de Hélder Rodrigues (também pertencente ao grupo) na organização em Lisboa de cursos de sacabuxa com professores estrangeiros consagrados, mas, lamenta, são apenas “eventos avulsos”.

O quarteto que esta quarta-feira se apresenta no Funchal é a base inicial de uma formação que poderá crescer em função dos repertórios e dos programas. “Quis imediatamente associar o primeiro programa à história da música portuguesa, partindo da emblemática biblioteca de D. João IV para construir um programa ecléctico europeu”, explica Tiago Simas Freire. Desse programa constam obras italianas, francesas, germânicas, britânicas e portuguesas da autoria de compositores como Anthony Holborne, Giovanni Gabrielli, Frescobaidi, Viadana, Scheidt, Sweelinck, Manuel Rodrigues Coelho, Diogo Alvarado, Eustache du Carroy e Biagio Marini, entre outros. Quanto à interpretação, Simas Freire diz que o desafio destes instrumentos “é o de imitar a voz humana em todas as suas qualidades: flexibilidade, eloquência, dinâmica, virtuosismo”. O grupo procura também ser fiel às técnicas interpretativas dos séculos XVI e XVII no que diz respeito à afinação, ao diapasão, às glosas e aos ornamentos.

O PÚBLICO viajou a convite do Festival de Órgão da Madeira

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