Um castro anti-romanos com fantasmas da era industrial

Contrariando o mais comum em Portugal, o Castro de Ovil, em Espinho, é anterior à ocupação romana e foi abandonado antes de qualquer aculturação. Mas os seus vestígios resistiram até hoje, preservando histórias da Idade Média e até da fábrica de papel cujas ruínas partilham com o povoado a mesma colina junto à água.

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Pode descer-se do comboio no apeadeiro do Vouguinha e fazer o caminho a pé. O arvoredo denso chega a criar alguma suspeita, que não é habitual os espaços de interesse museológico e turístico estarem assim resguardados entre vegetação tão densa e pouco palmilhada, mas é precisamente esse verde espesso, sobretudo quando a brilhar de chuva recente, que confere ao percurso a sensação de uma aventura à descoberta de tesouros arqueológicos. Sem carros à vista, sem telemóveis e sem nada que em redor denuncie o século XXI, há momentos em que quase se pede que o mato nos invada o caminho para sacarmos de uma faca à Indiana Jones e a brandirmos em desbaste largo à conquista de uma qualquer civilização perdida.

É uma imagem exagerada, ok, mas o exercício de imaginação justifica-se. Dele dependerá a verdadeira apreensão das histórias escondidas no Castro de Ovil, quando, ao atingirmos a clareira que o vem resguardado desde a Idade do Ferro, nos deparamos com os vestígios baixos de uma série de construções que, se não fosse pela sua marcante planta circular, talvez passassem despercebidas noutro lugar e se confundissem com meros e modestos muros agrícolas. É preciso parar, silenciar, imaginar o despojamento das famílias que por aí cirandaram desde o século IV a.C., ocupando-se da criação de ovelhas que poderá ter inspirado a toponímia do local, cultivando pequenas áreas em redor, esticando a trama de improvisados teares, percorrendo a pé os 2400 metros que separavam a aldeia da praia onde ainda hoje, em dias de marés com maior poder de arrasto, ficam a descoberto milenares armadilhas de pesca.

Jorge Salvador é o arqueológo que vem investigando esse e outro património do município de Espinho e destaca logo duas características próprias do Castro de Ovil. A primeira é que, ao contrário da maioria dos sítios castrejos em Portugal, o antigo povoado da freguesia de Paramos não terá sido tomado pelas tropas imperiais de Augusto. Os estudos aí realizados desde a década de 1980 indicam que a aldeia foi ocupada por 120 a 160 habitantes indígenas com graus de parentalidade próximos entre si, mas defendem que o grosso da população fugiu do local por altura da chegada dos invasores de Roma, no século I d.C.. “Alguns dos ocupantes de Ovil ficaram e resistiram, mas o povoado perdeu a sua monumentalidade”, diz Jorge Salvador. É certo que as escavações da era moderna permitiram recuperar no local fragmentos de ânforas, contas de colar em massa de vidro e até indícios de vinho da Etrúria, o que habitualmente se associa à presença romana no território, mas o arqueólogo tem uma explicação para essa circunstância: “Esses objectos vieram com os comerciantes, que eram sempre os primeiros a experimentar novas rotas antes de os romanos se lançarem ao caminho.”

Outra peculiaridade do povoado pré-romano que Paramos só viu oficialmente identificado em 1981 é que as suas construções não se apresentam no granito típico de aglomerados como a citânia de Briteiros, em Guimarães, ou a de Sanfins, em Paços de Ferreira. “Aqui a zona era de xisto, que não dá para fazer muros, e por isso é que, em vez de muralhas defensivas, o Castro de Ovil tinha antes um fosso”, conta Jorge Salvador. Essa vala foi preenchida com terra muito posteriormente, já na era industrial, mas a envolvente continua a preservar muito do que terá sido a sua paisagem arbórea original. O presidente da Câmara Municipal de Espinho, Joaquim Pinto Moreira, admite, no entanto, que esse cenário implicou um trabalho de reflorestação recente, apostado em restituir ao local espécies como carvalhos, sobreiros, medronheiros, salgueiros, cerejeiras-bravas, pinheiros-mansos e pilriteiros. “Retirámos tudo o que não era autóctone e estamos a promover uma mata de bosque indígena, no que tivemos a ajuda do projecto Futuro, das 100.000 Árvores na Área Metropolitana do Porto”, revela. “Escolhemos bem as espécies e depois andámos cá todos a plantar árvores, porque queremos que a estética destes três hectares seja a mais parecida possível com a que o espaço tinha originalmente na Idade do Ferro.”

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Referência geográfica

Qualquer que tenha sido a vegetação do local ou o número de habitantes do povoado, o facto é que o edificado do Castro de Ovil foi resistindo ao longo dos séculos e preserva ainda hoje traços bem visíveis de casas circulares com átrio, outras construções redondas para armazenamento de víveres e lenha, e até um lagar aberto na rocha cujo fundo declivado faz pressupor a ligação a um sistema rudimentar de escoamento e circulação de líquidos. As escavações das década de 1980 e 90 também identificaram no local fragmentos de peças de olaria ornamentada com incisões, pesos para redes de pesca criados a partir de seixos rolados com entalhes laterais para fixação dos fios e até cossoiros cerâmicos cuja variedade de formato e dimensão se atribui aos diferentes usos exigidos para tratamento da lã e do linho.

Pesquisas em arquivo permitiram ainda constatar que o povoado se manteve até ao século X como uma referência geográfica do território, como comprovam escrituras da Idade Média que adoptam a expressão “subtus castro de obile”  para ajudar à localização de outras propriedades e mencionam a “lagona de ovile” em alusão à reserva natural actualmente designada como lagoa de Paramos, na confluência da barrinha de Esmoriz.  Foi igualmente de documentos medievais que se recuperou outra das histórias contadas por Jorge Salvador: “Em 1288, um tal de Pedro Miguéis, cavaleiro com ligações ao Reino do Algarve, veio para Espinho e construiu uma casa em Ovil. Não muito depois, o deão do Castelo da Feira veio cá e derrubou-lha, dizendo que o Castro era de El-Rei D. Dinis — que, por acaso, era muito centralizador e pouco favorável aos interesses da nobreza.”

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A aristocracia da região manteve, ainda assim, um vínculo forte ao local, como se demonstrou séculos mais tarde noutra etapa marcante da história de Ovil, quando o morgado de Paramos preencheu de terra o fosso em redor do povoado castrejo e na base da colina construiu a Fábrica de Papel Castelo. Estava-se então em 1836, a indústria papeleira florescia no território e, com a fábrica a crescer ao ritmo da democratização desse suporte de escrita, a margem da ribeira de Rio Maior revelou novas freimas: especializou-se em cartuchos de mata-borrão, mas distribuiu pelo terreno outros espaços ajustados à polivalência dos seus operários, que, tanto alimentavam as mós de pedra com os farrapos de tecido a converter em pasta de papel e penduravam no espande as espessas folhas daí resultantes, como ocupavam horas mais folgadas cultivando uma horta e entrançando no telheiro as fibras com que produziam corda artesanal.

Décadas depois, há dias menos bons em que as águas que correm entre o verde denso de Ovil se mostram turvas e não são inodoras, devido a descargas poluentes pelas quais a Câmara de Espinho culpa unidades industriais não fiscalizadas do concelho de Santa Maria da Feira. Mas, desactivada na década de 1970, a Fábrica de Papel Castelo aí mantém o seu esqueleto, tomado pelas ervas, pelo murmurar das águas e pelos sons não-datados de folhagens em movimento e animais de locomoção discreta e reservada. Ao alhearmo-nos de quem tivermos por companhia, basta pensar com respeito no lapso de tempo que nos distancia dos primeiros ocupantes desta paisagem para se nos apurar a percepção. São pelo menos 2300 anos que desfilam entre aquelas ruínas. Podemos não ver os fantasmas, mas de certeza que ali estão.

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