O Brasil do nosso descontentamento

Esta eleição parece ser mais um ajuste de contas com o passado, dos governos do PT ou dos tempos da ditadura, do que um voto num candidato e programa de futuro.

1. O Brasil, tal como a generalidade da América Latina, parece ter uma tendência sociológico-política enraizada para ter caudilhos e líderes “cesaristas” (culpa que pode ser, de alguma forma, atribuída à colonização portuguesa e espanhola). Não é um acaso que, na generalidade dos Estados da América Latina, tenham sido adoptados constitucionalmente sistemas ou formas de governo presidenciais. Em parte isso poderá ser explicado de forma benigna, pela influência da Constituição 1788 dos EUA, a primeira de um Estado livre nas Américas e que adoptou um modelo presidencialista. Todavia, se compararmos com a actual Europa, o presidencialismo e semi-presidencialismo — pelo menos na União Europeia — é uma relativa excepção e não a regra. Uma larga maioria de democracias europeias tende para o parlamentarismo, menos personalizado no poder, existindo alguns (poucos casos) de semi-presidencialismo como em França, Portugal, etc.

2. Não existem no contexto político do Brasil partidos com um cunho ideológico vincado e muito coerente de esquerda e direita, classificação política, aliás, que é essencialmente estranha ao continente sul-americano. Tem origem na Revolução Francesa de 1789 e, provavelmente, é pouco adaptada a culturas políticas não europeias/ocidentais, que têm as suas próprias formas de fazer política. (Mesmo na Europa/Ocidente de hoje é questionável se capta, com rigor, os diferentes posicionamentos políticos.) Daí a relativa normalidade da transferência de voto, de sectores consideráveis da população para candidatos de perfis ideológicos à primeira vista muito diferentes ou até antagónicos, como é observável no Brasil e noutros Estados das Américas. Mesmo nesta era de ascensão dos populismos este fenómeno, pelo menos nessa dimensão, não é muito comum na política europeia onde o perfil ideológico dos partidos é mais vincado.

3. Para além da ideologia, o perfil dos candidatos que passaram à segunda volta, Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, é particularmente interessante do ponto de vista biográfico, nomeadamente quanto à sua ascendência, em termos de grupo nacional e cultural de origem. É um aspecto que tem passado despercebido na análise dos mesmos, mas que merece ser visto com alguma atenção. Ambos, como é normal no Brasil, têm origem em gerações anteriores de emigrantes. No caso de Fernando Haddad, para além do percurso académico, a sua origem familiar está no Líbano (ver “Le Libano-Brésilien Fernando Haddad, plan B de Lula pour la présidentielle” in Orient Le Jour, 9/08/2018). No passado, a sua família estabeleceu-se em São Paulo onde alguns falam mesmo da existência de uma “dinastia libanesa” no poder (ver “Prefeito mantém, ‘dinastia’ libanesa” in Estadão, 16/12/2012). Em concreto, os seus antepassados têm origem numa família de tradições religiosas cristãs ortodoxas, tendo o seu avó, Cury Habib Haddad, participado nas lutas da independência libanesas. Foi também padre da Igreja Ortodoxa.

4. No caso de Jair Bolsonaro, que vive no Rio de Janeiro, e para além do facto bem conhecido da sua carreira militar anterior, a origem familiar encontra-se em emigrantes italianos que afluíram ao Brasil oriundos do Veneto, Norte de Itália. (Ver “Jair Bolsonaro, chi è e cosa pensa il candidato accoltellato in Brasile” in Corriere della Sera, 7/09/2018). A situação é curiosa quando pensamos na actual Itália populista e na Liga da Matteo Salvini — e na sua hostilidade aos fluxos migratórios — que, aliás, apoia Jair Bolsonaro no Brasil (ver “Vice-premiê da Itália presta solidariedade a Bolsonaro e declara apoio a candidato do PSL” in Estadão, 15/09/2018).

5. Nem Jair Bolsonaro, nem Fernando Haddad, embora por razões substancialmente diferentes, são os candidatos de que o Brasil precisava nesta altura particularmente difícil da sua história recente. Noutras circunstâncias políticas e económicas talvez Fernando Haddad pudesse ser um candidato unificador, que afastasse os radicalismos e governasse fundamentalmente ao centro e sem grandes fracturas. Não pertence à ala radical do PT-Partido dos Trabalhadores e parece admirar o estilo de Fernando Henrique Cardoso — provavelmente o melhor presidente do Brasil em democracia. Mas o maior problema de Fernando Haddad vai ser descolar do lado mais negativo dos governos do PT de Lula da Silva e Dilma Rousseff — especialmente da corrupção. No actual contexto, onde grande parte da sociedade brasileira, justa ou injustamente, se tornou extremamente hostil ao PT e há notórias dificuldades económicas de muitos, será difícil fazê-lo.

6. Paradoxalmente, o sucesso de cada um depende do radicalismo do outro. Quer Jair Bolsonaro (de uma maneira ostensiva), quer Fernando Haddad (de uma maneira mais discreta), contam com a radicalização do voto para esvaziar as posições mais moderadas ao centro. Quanto a Bolsonaro, ganha votos numa amálgama incoerente de eleitores, que vai da extrema-direita simpatizante dos tempos da ditadura ao centro mais democrático e liberal. Paradoxalmente, capta ainda eleitores sociologicamente de esquerda, entre as classes mais pobres. O maior trunfo de Jair Bolsonaro parece estar no facto de ser o candidato mais anti-Lula e anti-PT possível. Claro que neste ambiente político destrutivo — onde o critério de voto predominante para ser o “estar contra” — muito provavelmente nenhum dois conseguirá unir minimamente o Brasil e virar esta página turbulenta da história do país. Se para Jair Bolsonaro isso parece uma evidência, no caso de Fernando Haddad, como já notado, terá imensas dificuldades em descolar da imagem de corrupção ligada aos governos do PT. Para além disso, em parte importante do eleitorado parece ter-se instalado a ideia que foi lançado na corrida eleitoral para “limpar” o legado de Lula da Silva, Dilma Rousseff e outros dirigentes do PT. Isso leva à convicção de muitos, ainda que possa ser incorrecta, de que este, se for eleito, tentará amnistiar Lula da Silva.

7. Na segunda volta das presidenciais, que vai decorrer a 28 de Outubro, o grau de rejeição de cada candidato, as alianças e promessas de lugares políticos em caso de vitória, e a capacidade de mobilizar os eleitores que não votaram em nenhum dos dois candidatos na primeira volta, serão decisivos. Mas a eleição parece ser mais um ajuste de contas com o passado, dos governos do PT ou dos tempos da ditadura, do que um voto num candidato e programa de futuro. Neste contexto, o “Brasil, País do Futuro” de Stefan Zweig (1941), um grande admirador do país, soa a uma amarga ironia. Talvez um outro título de um escritor norte-americano — “O Inverno do Nosso Descontentamento” de John Steinbeck (1961) — capte hoje, de alguma forma, a situação social e política. A hipocrisia, a ganância, a leviandade e a degeneração moral, temas subjacentes ao enredo de John Steinbeck, estão presentes no actual turbilhão social e político brasileiro. Veremos quando este acalmará e a normalidade democrática e bem-estar regressarão ao país.

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