No caldeirão de géneros do Mucho Flow o free jazz ferveu

O trio sueco Fire! esteve em destaque na 6.ª edição do festival que decorreu este fim-de-semana em Guimarães, por onde também passou o grime do londrino Gaika, o pós-punk dos Black Midi e a pop suave de Hilary Woods.

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O saxofonista Matz Gustafsson, o trio Fire! Bruno Carreira
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Em 1977, Bob Marley gravava Punky reggae party e, conscientemente – assim como os The Clash quando no mesmo ano, quando o punk surgiu no Reino Unido, lançaram a versão de Police and thieves, do jamaicano Junior Murvin's –, uniu mundos musicais distintos numa festa sonora onde não cabiam mentalidades bacocas e separatistas, numa altura em que os públicos se fechavam em bolhas musicais definidas por géneros.

Pois, actualmente, e de há uns anos para cá, é comum em reuniões musicais compostas por várias bandas a coexistência de vários mundos sonoros sem que a diferença entre eles represente um problema – será antes uma vantagem.

Exemplo disso é o festival Mucho Flow, que à 6.ª edição juntou em Guimarães, nas duas salas de concertos do Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura (CAAA), 11 projectos musicais que se movem em espectros musicais distintos. Do grime do londrino Gaika ao free jazz dos suecos Fire! ou ao pós-punk dos também londrinos Black Midi e da pop suave da irlandesa Hilary Woods, o foco incidiu nas actuações, independentemente do género.

Liderados pelo saxofonista Matz Gustafsson, o trio Fire!, também composto por Johan Berthling (baixo) e Andreas Werlin (bateria), roubou para si grande parte do protagonismo – dividido essencialmente com os Black Midi –, numa actuação imprevisível, sempre próxima da vertigem, dinâmica e contundente.

Com um baterista irrequieto sem perder a sensibilidade, um saxofone ora estridente, ora imponente, e um baixista aventureiro, capaz de se desviar para linhas que se distanciam da potencial guia lançada pelo Gustafsson, abrem caminho para o improviso e para o experimentalismo sónico que nalguns momentos recorre a pedais e outra parafernália electrónica.

Andreas Werlin é um relógio suíço na marcação do tempo. Com movimentos de tarola e prato-de-choque suaves acompanha um saxofone nervoso. Para um baixo mais minimal atira-se para ritmos intricados que ganham protagonismo e catapultam a composição para outra dimensão. Sem desprimor para os outros dois elementos, o baterista é a cola que une o trio.

Bem cimentada está também a zona de conforto por onde os Fire! se movem. De base free jazz, muitas vezes vão ao psych-rock e atiram-se ainda sem medo ao noise. Fazem-no de uma forma consistente e empolgante. Sem onanismos desnecessários, em detrimento do virtuosismo, apostam de forma certeira na eficácia de ritmos, ainda que duros, pegajosos.

No palco Revolve, nome da promotora/editora que organiza o evento, foram os primeiros a destacar-se, numa noite ganha por eles, fruto da experiência de quase uma década de actividade, traduzida em pouco mais de uma dezena de lançamentos.

Rock imberbe, mas de peso

Motivo de curiosidade despertavam os Black Midi, que a NME, no início deste ano, catalogou como a melhor banda ao vivo de Londres da actualidade, a par dos Shame, que recentemente passaram por Paredes de Coura. Talvez este rótulo seja exagerado, porém, é certo que este grupo de pós-adolescentes imberbes, à excepção de uns singles editados ainda sem relevância a nível discográfico, têm argumentos suficientes para num futuro próximo subirem alguns degraus no hierarquia do rock 'n' roll mais recente.

Fazem um pós-punk aparentemente desleixado, mas sofisticadamente pensado. Por vezes arriscam em malhas tecnicamente mais complexas a pisar a linha do prog-rock. Noutras entram numa trip colectiva à boleia de instrumentais mais desgovernados, direccionados pela voz de um vocalista anasalado e agudo, que em presença ganha pela forma como aguenta uma timidez apelativa e charmosa.

Harmonicamente belos e criativamente sólidos, nesta estreia nacional com data única garantiram lugar no pódio das melhores actuações do festival.

Pop suave e grime previsível

Também pela primeira vez em Portugal e com data única esteve Hilary Woods, que após o post-hardcore/noise dos ingleses Ditz, que até então nunca tinham tocado fora do Reino Unido, abriu o palco Super Bock.

Ao leme de um teclado, navega por uma pop ingénua e delicada. Mais previsível do que uma Grouper e menos ousada que uma Emma Ruth Rundle, esforça-se para chegar à maturidade que ainda não atingiu, mas a que poderá chegar se encontrar o seu som. É certo que não é uma novata. No início de 2000, já tocava com os JJ72. A solo, o recentemente editado Colt, ainda não chega para convencer. Ao vivo, vai coleccionando loops de teclado que servem de base para linhas de voz bem executadas. Quando assume a guitarra, ganha mais força. Entre estes dois mundos, garantiu uma actuação competente, mas pouco surpreendente.

Na mesma linha esteve GAIKA que de Londres levou até Guimarães o seu grime que pouco acrescenta ao que nomes como Dizzee Rascal, Kano, Wiley ou Skepta fizeram pelo género. Tenta inovar recorrendo a influências jamaicanas, mas perde-se numa voz em auto-tune constante, num flow monótono e preguiçoso. Serviu para garantir algum movimento dentro de uma sala cheia, mas, no que toca ao lugar que ocupa no hip-hop com base na capital inglesa, deixa muito a desejar.

De regresso a Portugal estiveram ainda as catalãs Mourn, que recentemente editaram Sorpresa Família, a servir de base para uma actuação sólida e competente, tendo como pano de fundo um rock directo que vai beber aos anos 1990.

Ainda de tarde tocaram no exterior do edifício, no âmbito do festival Guimarães Noc Noc, que decorreu na mesma cidade este fim-de-semana, os portugueses Vaiapraia & as Rainhas do Baile e os Huggs, dois concertos que apesar de pertencerem a outro evento foram programados pelo Mucho Flow.

O rock descomprometido dos primeiros teria ganho outra dimensão se o vocalista não tivesse optado por cair em tiques rock star pouco justificáveis em 2018. No rock vale quase tudo, mas não vale prejudicar os pares. O set que ali levaram já se prolongava para lá da hora. A persistência em se manterem em palco, mesmo após avisos por parte dos técnicos que chamaram repetidamente à atenção para o facto de estarem a ultrapassar o tempo limite de palco, acabou por prejudicar o indie/garage rock dos Huggs, que por força disso tiveram que encurtar o alinhamento.

O PÚBLICO acompanhou o festival a convite do Mucho Flow.

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