Fazer rir sem fazer rir

Nanette, o especial de comédia da australiana Hannah Gadsby mostrado em Junho, tem tido um impacto grande. Será que há uma tendência de comédia que não é necessariamente orientada para fazer rir? O Vulture, site da New York Magazine, chama-lhe "pós-comédia". O que é que quem trabalha no meio pensa sobre isso?

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No ano passado, a australiana Hannah Gadsby decidiu, antes de se reformar da comédia, fazer um último espectáculo. Nanette começou no palco e chegou ao Netflix em Junho de 2018. Feito de histórias da sua vida pessoal como mulher lésbica, um alvo habitual de piadas, dos abusos que sofreu e de uma crítica à comédia, o especial teve um enorme impacto logo que saiu: fez colegas de profissão questionarem o seu trabalho, levou Gadsby ao palco dos Emmy, e travou a anunciada reforma da humorista.

Nanette é um espectáculo intenso, ultra-pessoal que é por vezes irado e triste e que, durante trechos significativos, decide abandonar por completo as piadas, a cómica pensa não só sobre o que é fazer rir, mas também sobre a auto-depreciação, a saúde mental e a romantização dos problemas psicológicos na arte em geral e como esta não tem, ao longo da História, sido muito branda para com quem não é um homem branco.

A hora e dez de stand-up faz parte de uma série de conteúdos diferentes entre si, sejam especiais experimentais, alguns filmados, ao contrário do que é normal, sem público ou comédias no cinema e na televisão que parecem não estar necessariamente interessados em suscitar risos, preferindo parar para reflectir sobre a própria comédia ou o absurdo da vida, contar histórias ou tratar temas sérios.

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Mas será que são comédias? Em Setembro, o Vulture, site de cultura pop da New York Magazine, agrupou esta tendência, com destaque para Nanette, e chamou-lhe “pós-comédia”. A peça inaugural da série de artigos sobre o assunto, de Jesse David Fox, perguntava logo no título: “Quão hilariante é que a comédia tem de ser?” Ao P2, o autor fala de como o ensaio foi recebido no mundo da comédia: “Enviaram-me mensagens a dizer que a indústria se estava a distanciar ainda mais de piadas do que eu tinha feito parecer. Posto isso, como são cómicos, muita gente só fez piadas sobre isso, a apontar o absurdo do termo, o que eu compreendo. Também houve críticas, exclusivamente de pessoas que leram mal o texto como um argumento para esse género ser melhor do que outros, por oposição ao argumento que faço, que é o de que o fenómeno existe.”

Uma das críticas mais habituais a Nanette é que não é stand-up. Que lhe faltam piadas. A própria autora gozou com isso no Twitter: “Não tenho problema com todos os homens zangados a dizerem-me que não tenho piada. Só desejava que eles pelo menos tentassem exprimir os seus sentimentos desproporcionais sobre comédia de uma maneira mais humorística.”

Essa visão negativa não é partilhada pelos profissionais de comédia com quem o P2 falou. Laraine Newman, do elenco original de Saturday Night Live, declara: “Eu diria que é um novo formato. É certamente teatral, mas a entrega dela é completamente stand-up.” Chris Schleicher, que escreve para a vindoura adaptação televisiva de Quatro Casamentos e um Funeral, concorda que Nanette tem “um número significante de piadas bem escritas”. Prossegue: “Tem muita piada, particularmente nas partes sobre história da arte”. “As secções dramáticas podem ser o destaque”, mas ele, “que não é de riso fácil”, esteve “o tempo todo” a rir-se. Ainda assim, confessa que acabou “a chorar” lágrimas “catárticas”: “Ela estava a articular muitos sentimentos que eu nunca tinha dito em voz alta, particularmente o custo psicológico da auto-depreciação e à rejeição do impulso de transformar o trauma queer  em histórias engraçadas para públicos heterossexuais.”

Nos anos 1980, Merrill Markoe foi a principal arquitecta do Late Night de David Letterman – e uma das poucas mulheres a alguma vez ter escrito para o programa –, uma verdadeira revolução na forma como se fazia comédia de late night. Ao P2, defende que gosta de pensar na “comédia como uma forma de arte” e que é preciso “deixá-la evoluir”. “Se se mantiver a mesma para sempre, não é uma forma de arte”, é coisa de “cabotino”. Especifica como, ao longo da história da comédia, os formatos se foram esgotando, primeiro a vaudeville, depois a comédia televisiva e as sitcoms que foram um dia frescas e interessantes, mas se transformaram em lugares comuns. “O mesmo com os talk shows. Eram interessantes até se tornarem uma seca previsível. Depois nós, no Letterman, explodimos com o paradigma, só para preservar a nossa sanidade criativa.”

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“Não acho que qualquer forma de arte deva ser uma coisa ou outra”, continua. “Isso é meio caminho andado para ser frágil e inútil e aborrecida.” Quanto ao epíteto “pós-comédia”, “a história da arte está cheia de pessoas a tentarem criar etiquetas inúteis e categorias para a criatividade, compreendo que é o que os críticos têm de fazer, mas a arte vai para a frente sem estas categorias importarem”.

O argumentista Chris Schleicher lamenta que o tipo de comédia com que cresceu, “densa em piadas”, como 30 Rock, tenha sido posto um pouco de lado, mas ao mesmo tempo sabe que é cíclico e gosta “de ver todas estas comédias dramáticas que parecem novas e diferentes”. Mas não acha que retirem espaço às outras séries: “A comédia não é um jogo de soma zero.”

Nada disto é novo

Há vários anos que há pessoas preocupadas com extravasar as margens do que é ou não comédia. Nanette lida directamente com a tensão que leva ao riso e usa uma estratégia que limita e deixa de fora partes importantes das histórias. Steve Martin, no seu livro de memórias Born Standing Up, de 2007, escrevia que, nos anos 1970, se perguntou: “E se não houvesse punch lines? E se não houvesse indicadores [de quando rir]? E se eu criasse tensão e nunca a libertasse? O que é que o público faria com toda essa tensão? Teoricamente, teria de sair nalgum lado. Mas se eu continuasse a negar-lhes a formalidade de uma punch line, o público escolheria o seu próprio lugar para rir, essencialmente por desespero.”

O texto de Jesse David Fox aborda justamente a comédia em que não há lugares claros para rir. Refere, como antecedente, Uncabaret, a noite de comédia alternativa em Los Angeles criada por Beth Lapides que está a comemorar 25 anos. Merrill Markoe também menciona a sua importância. “Temos andado a minar essas fronteiras da comédia incessantemente lá. Adorei o especial da Hannah Gadsby. Ela é fluida e tem uma voz original e autêntica… Mas habituei-me a ouvir sets assim no Uncabaret. A Julia Sweeney desenvolveu lá um espectáculo hilariante chamado God Said Ha!, sobre o irmão dela ter tido cancro, os pais mudarem-se para casa dela e ela própria depois ficar com cancro. Foi uma revelação, comecei a tentar fazer comédia com ter sido agredida sexualmente. Se a Julia podia fazer isso com cancro, bem… O que é que não podia ser comédia? Mais recentemente, o Patton Oswalt fez o espectáculo dele sobre recuperar da morte súbita da mulher. É simplesmente a expansão de um formato que precisava de expansão.” Gadsby foi só mais uma de uma longa lista de pessoas “a tentarem adicionar alguma profundidade ao formato”. “Fiquei surpreendida com a quantidade de reavaliações críticas que ela causou. Parecem vir de pessoas que achavam que stand-up ainda era piadas sobre sogras e a comida em aviões.”

Laraine Newman é outra habitué do Uncabaret. “Para mim parece ser a génese deste novo formato experimental. Mesmo sendo monólogos e contarem histórias e não piadas, suscitam grandes risos.” A linhagem é fácil de ver: Maria Bamford, que tem um especial gravado na sua sala de estar em que o público são só os seus pais, frequenta o Uncabaret. Quanto a comédia que não é feita necessariamente para rir, Newman nomeia um filme de Jerry Schatzberg com Faye Dunaway de 1970, Tempo de Viver. “O humor é tão subtil e comportamental, mas tão profundamente hilariante para mim.” Quanto ao humor nos dias de hoje, “a comédia evoluiu no sentido em que é muito mais pessoal e idiossincrásica. Por causa da internet, os cómicos e intérpretes estão numa posição de serem aquilo que são na realidade. Há um público para isso”, conclui.

Eliza Skinner, que faz stand-up e está aos comandos da escrita de Drop the Mic, explica que sempre foi assim: “Não podes manter a atenção das pessoas por uma quantidade longa de tempo sem investimento emocional. Há a ‘comédia de clubes’, mais genérica e densa em piadas, e a comédia alternativa, baseada em histórias, mais pessoal. Para se identificar com comédia alternativa, o público precisa de empatizar com a pessoa no palco e ligar-se à experiência dela. As plateias estão a ganhar mais prática a imaginarem-se no lugar das pessoas que não são como elas, de géneros, raças ou religiões diferentes.” Jena Friedman, também cómica de stand-up, ex-produtora do Daily Show e alguém que estava a escrever para a nova temporada de Roseanne antes do cancelamento, resume: “É mais fácil fazer pessoas rir do que dizer algo profundo que as faça pensar de forma diferente ou as inspire a agir. Com sorte, os grandes cómicos conseguem fazer ambos.”

Diversidade é força

Nanette é assertivo sobre a necessidade de haver vozes diferentes na arte, argumentando que “diversidade é força”. O Uncabaret assume-se como “não-homofóbico”, “não-xenófobo” e “não-misógino”. A verdade é que, por muito que certos cómicos gostem de garantir que a comédia nunca foi tão pouco livre, há cada vez mais e diferentes vozes nela, além de muitos meios de comunicação possíveis. Há a ideia de que as mesmas piadas de sempre já não chegam. Será que isto da “pós-comédia” tem directamente que ver com mais oportunidades para grupos que antes não tinham espaço na comédia? Jesse David Fox defende que, apesar de “ser o resultado directo da diversidade de perspectivas”, tem medo de justificá-la com o facto de “haver mais oportunidades para grupos marginalizados”.

Sobre o politicamente correcto, o bicho-papão que tantos cómicos gostam de demonizar, o jornalista comenta: “Este exagero animalístico do anti-politicamente correcto é só pessoas a queixarem-se de que não são mais populares. A maioria dos cómicos anti-politicamente correcto não está a quebrar barreiras, mas apenas a pregar aos convertidos. A correcção política obriga a comédia progredir como forma de arte. Força um cómico a ver se a única razão pela qual conseguiu um riso é porque disse uma palavra má. Faz com que trabalhem mais e de forma mais inteligente. É uma coisa boa.”

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Chris Schleicher demonstra entusiasmo em relação à comédia em 2018, mesmo que admita que é um lugar estranho, entre o sério e o absurdo. “Muitos de nós estão a questionar qual é o valor da nossa comédia enquanto vemos a sociedade a desmoronar-se. Às vezes quero fazer um tweet como ‘colibris são só percevejos disfarçados’ e penso ‘será isto demasiado frívolo? Deverei só lembrar as pessoas de que o presidente é um supremacista branco?’ Normalmente acabo por fazer ambos.” Jena Friedman é peremptória: “Acho necessário, enquanto escorregamos para o fascismo, sermos lembrados do que tem piada nisso”.

Para Schleicher, a diversidade é a melhor parte da comédia em 2018: “A razão pela qual essas vozes estão a ter sucedido é que temos estado esfomeados tanto tempo por elas. Nós, nas comunidades pouco representadas, habituámo-nos a aceitar que a comédia vem do ponto de vista de pessoas que não são como nós que é um pouco chocante ver alguma representação." Prossegue: "É emocionante já não ter de continuar a acompanhar coisas que me alienam com piadas homofóbicas." Quanto ao bicho-papão, conclui: "Reviro sempre os olhos quando alguém se queixa de o público ser ‘demasiado politicamente correcto’. É um mercado livre, as pessoas só não compram o velho material que eles estão a vender.”

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