A australiana que queria deixar de fazer comédia

Hannah Gadsby estava farta da profissão que tinha escolhido e fez um brilhante espectáculo de stand-up de despedida. Nanette, disponível no Netflix, demonstra que ela já não pode desistir.

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Hannah Gadsby no poderoso Nanette DR

Hannah Gadsby estava farta da comédia de stand-up. A australiana, natural da Tasmânia, estava zangada com o mundo em que hoje vivemos e com a profissão que tinha escolhido. Mais especificamente, estava cansada do estilo autodepreciativo que tinha desenvolvido ao longo dos anos, no palco e na televisão. Ia, por isso, desistir da comédia para trabalhar na mercearia do irmão e ser feliz.

Só que a vida trocou-lhe as voltas. Gadsby pôs o seu último fôlego cómico num espectáculo de despedida. Queria questionar a validade da própria comédia em geral, distinguir piadas de histórias e perceber o que é melhor — conclui que são as histórias, porque as piadas deixam o fim de fora — e jogar constantemente com a tensão que um cómico cria no público. O resultado é excepcional, feito com a mestria de quem tem muitos anos disto e passou mais de um ano a aprimorar o material. Chama-se Nanette — a explicação para o nome, que não está relacionada com o resto do conteúdo, é hilariante, só um dos inúmeros detalhes brilhantes do especial — e está disponível desde 11 de Junho no Netflix.

Durante pouco mais de uma hora, a cómica navega habilmente entre vários registos: ora faz rir, ora faz chorar, séria e zangada — uma qualidade que, sublinha ela, normalmente é tida como mais segura em stand-up quando vem de um homem. Nanette é um especial que, tal como o recente Rape Jokes, de Cameron Esposito, pensa a era #MeToo — tanto Gadsby como Esposito são vítimas de abusos sexuais e falam sobre isso.

Aqui são dadas novas perspectivas à questão do separar a arte do artista — sem negar o passado: a grande influência dela é, segundo a própria, Bill Cosby — sem nunca ter em conta as vítimas do artista e o potencial delas, além da glorificação dos problemas mentais desses mesmos artistas e a ideia feita de que é preciso sofrer para criar. A cómica recorre a exemplos concretos, como Picasso, no caso dos abusos, e Van Gogh, no caso dos problemas mentais. São pintores porque Gadsby é licenciada em História de Arte — a própria afirma, em dada altura, que é raro especiais de comédia terem tanto espaço para essa matéria — e percebeu que esse mundo é feito por homens.

Gadsby analisa como a sociedade a ensinou a odiar-se a ela própria, uma mulher lésbica e corpulenta que vem de uma zona que é alvo de inúmeras piadas — e onde até 1997 a homossexualidade era ilegal. Ou seja, é alguém que esteve sempre à margem e foi obrigada a desenvolver um sentido de humor para sobreviver — a tal autodepreciação de que ela estava farta, percebeu, causava danos graves em quem não faz parte da maioria. Os estereótipos associados a tudo o que ela é são aqui contrariados, ao invés de serem reforçados, o que infelizmente acontece demasiado na comédia. É algo contra o qual ela se insurge quando menciona a quantidade de piadas que se faziam a atacar Monica Lewinsky e não Bill Clinton nos anos 1990.

Hannah Gadsby queria reformar-se. Agora vai ter de ficar um pouco mais. E ainda bem. A comédia vai certamente ser melhor por causa disso.

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