Albano Belino: o arqueólogo ainda por ser que trouxe à luz o património de Braga

Nascido em Gouveia, Albano Belino cresceu em Guimarães e aproveitou o interesse vigente nessa cidade pela arqueologia para estudar, no final do século XIX e no início do século XX, o património bracarense de várias eras. Várias das obras foram agora reeditadas pela Câmara Municipal de Braga.

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Belino lutou para que Braga tivesse um museu de arqueologia, que seria criado 13 anos após a sua morte. Paulo Pimenta
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Cumprido mais de um século da sua morte, em 1906, o legado de Albano Belino subsiste com a colecção de 44 peças, ainda hoje à guarda da Sociedade Martins Sarmento – pedras ornamentadas oriundas da cultura castreja, aras com inscrições romanas, marcos e mosaicos também do período de Bracara Augusta e ainda uma peça de arte sacra do século XVI. Nesse espólio, incluem-se também algumas das obras escritas sobre as investigações arqueológicas e epigráficas, que estão disponíveis em Estudos Bracarenses, uma reedição de nove das obras do autor, promovida pela Câmara Municipal de Braga que foi apresentada na noite de sexta-feira, no Museu D. Diogo de Sousa.

Com este compêndio, de cerca de 800 páginas, o município pretende facilitar o acesso dos investigadores à obra de Albano Belino e também obter um maior reconhecimento para o estudioso junto da população, justifica o historiador Rui Ferreira, do departamento de cultura da autarquia. “É uma fonte obrigatória quando se está a estudar Braga. Deixa uma série de apontamentos sobre monumentos imensamente úteis. Se virmos testes de doutoramento sobre Braga, o Albano Belino está lá sempre”, explica.

Entre as obras reeditadas, o investigador da história de Braga destaca Inscrições e letreiros da cidade de Braga e algumas freguesias rurais (1895), a primeira obra de Belino, na qual identifica as inscrições de mais de 50 locais da cidade e dos arredores e deixa “um legado fundamental para decifrar Braga e a sua história”, Arqueologia Cristã (1901), o maior livro, em que o investigador reúne o património religioso dos concelhos de Braga e de Guimarães, e ainda a última obra, Cidades Mortas.

Esse livro contém os registos das escavações efectuadas por Belino em três castros de Braga - Monte Redondo, Monte de Santa Marta (Falperra) e no Monte das Caldas -, na altura em que morreu, em 1906. O livro, inacabado, foi publicado a título póstumo, em 1909, por José Leite de Vasconcelos, arqueólogo que fundou o Museu Nacional de Arqueologia, em 1893, e que deixou um elogio fúnebre a Belino aquando da sua morte.

É precisamente aí que o investigador começa a dar “sinais do que seria na maturidade” enquanto arqueólogo, considera António Amaro das Neves, historiador que presidiu à Sociedade Martins Sarmento (SMS) entre 2004 e 2013 e autor da introdução escrita para esta reedição, em que conta a vida e obra de Albano Belino. Amaro das Neves nota que Belino morreu aos 43 anos, precisamente a idade em que Martins Sarmento se tornou arqueólogo, ao iniciar as escavações nos castros de Guimarães, na década de 70 do século XIX. “Ele tem uma obra que é o anúncio do que iria ser”, sugere. “Se vivesse tanto tempo como o Martins Sarmento, provavelmente o Albano Belino seria hoje alguém muito relevante da história da arqueologia nacional”.

Alguns dos escritos iniciais, como as Inscrições e Letreiros da cidade de Braga, tinham, por outro lado, “muitas incipiências” e foram até ridicularizadas numa atitude que, para António Amaro das Neves, era injusta. “Ele era ainda verde e estava a aprender. A mim, causa-me um bocado de impressão o gozo que se dava por ele não ser arqueólogo profissional. Na altura, ninguém tinha formação académica em arqueologia”, defendeu.

Na realidade, Albano Belino não tinha qualquer diploma escolar, nem sequer de instrução primária, mas tinha consigo o dinamismo necessário para concretizar os seus projectos, quando chegou jovem a Guimarães. “Ele vai-se revelar desde muito cedo um fulano que nós diríamos hoje ser hiperactivo: muito mexido, que se metia em muitas coisas”, descreve o antigo presidente da SMS. Belino foi empregado do comércio, jornalista, poeta, mas acabou por se dedicar principalmente à arqueologia e à epigrafia, muito por influência de Martins Sarmento, a figura mais respeitada da época na cidade berço.

Esse dinamismo via-se também no sem número de instituições de que foi membro, desde a SMS à Real Associação dos Arquitectos Civis e Arqueólogos Portugueses, à Sociedade de Geografia de Lisboa e até a instituições espanholas como a Real Academia de la Historia. Essa forma de estar resulta de uma ânsia de reconhecimento que Belino nutria. “É curioso que, nas fotografias dos livros, ele vem cheio de medalhas. Era uma pessoa que buscava algum reconhecimento social também, porque vem de baixo”.

Belino morreu a 2 de Dezembro de 1906, em Guimarães, numa altura em que se encontrava “zangado” com a cidade onde estudara o património, pelo facto de não ter obtido um espaço para criar o museu e pelo facto de o castelo, com excepção da torre de menagem, estar a ser demolido naquele período. A colecção reunida foi doada à SMS, entrelaçando Braga e Guimarães, dois territórios normalmente marcados pela rivalidade, mas partilhados na vida de Belino. “É uma história de vida extraordinária”, sintetiza Amaro das Neves.

De Guimarães para se tornar no Martins Sarmento de Braga

“O percurso de Albano Belino é o percurso de vida de alguém que fintou a vida e o destino que ia ter: o de ser um tosquiador ou um operário de lanifícios em Gouveia, que acaba por ter hoje o nome de uma rua em Braga”, observa Amaro das Neves. Nascido em 18 de Dezembro de 1863, no seio de uma família humilde de São Julião, em Gouveia – a freguesia que “dava mais mão-de-obra para a indústria de lanifícios da zona”, nota o historiador -, Belino começou a escapar-se de um rumo aparentemente traçado, quando, aos 12 anos, se deslocou para Guimarães, na companhia de um irmão mais velho.

Aí, conta Amaro das Neves, tornou-se aprendiz de empregado de comércio – marçano era o termo utilizado – na Tabacaria Lemos, um dos espaços da cidade onde decorriam tertúlias sobre literatura, política ou assuntos locais. Um dos membros dessas tertúlias, António de Oliveira Cardoso, cónego, poeta e dramaturgo, “engraçou” com Albano Belino e decidiu “ensinar-lhe as primeiras letras e latim e ensinar-lhe a compor versos”.

O futuro arqueólogo acaba por passar a juventude numa cidade que começava a ser “mais exigente” face ao poder central na reivindicação dos seus direitos e que começava a “fervilhar culturalmente”, nomeadamente nos estudos históricos e arqueológicos, com o conhecimento a assumir um papel importante na definição de boa parte da elite social, revela o historiador. Nesse contexto, Belino, que já tinha a “ambição de ser rico”, queria ser como os ricos daquela cidade: “envolvidos culturalmente e envolvidos em causas cívicas”. O autodidacta envolveu-se, assim, na organização dos 700 anos da morte de D. Afonso Henriques, em 1885, criou um museu na Venerável Ordem Terceira de São Francisco e foi o primeiro presidente da comissão de melhoramentos da Penha, então uma “montanha onde sobressaía o cinzento do granito, ao invés do verde das árvores”.

Em 1891, casou com uma sobrinha do cónego que o tinha ensinado a ler e a escrever, Delfina Rosa, e rumou a Braga. Já rico e, com uma esposa mais rica ainda, o estudioso não precisava de trabalhar para sobreviver e começou a aperceber-se que “Braga era espantosamente rica do ponto de vista arqueológico, por causa da presença dos romanos, e pouco estudada”, explica Amaro das Neves. Belino começa assim a estudar as inscrições, a escavar e a escrever em publicações como O Arqueólogo Português, fazendo de Braga o seu laboratório. “O que o Sarmento fazia em Guimarães, ele quis fazer em Braga”, afirma Rui Ferreira. O estudioso trocou, aliás, várias impressões com o vimaranense para o seu trabalho arqueológico, entre 1894 e 1899.

O museu e o castelo

Com o seu espólio arqueológico a crescer, Albano Belino começou a acalentar o desejo de criar um museu para o albergar. A Câmara Municipal de então já antes manifestara a intenção de criar um museu e reunira alguns materiais arqueológicos na zona das Carvalheiras – perto das ruínas de Bracara Augusta. O projecto acabou por se manter num impasse, enquanto Belino ambicionava dar o seu nome ao futuro museu.  “Como o Martins Sarmento tinha um museu seu em Guimarães, Albano Belino queria o seu em Braga. Há a ideia que ele pertenceu à comissão para o museu municipal, mas nunca pertenceu”, afirma Amaro das Neves.

O arqueólogo chegou a dispor, em 1899, de uma sala no Paço Arquiepiscopal, disponibilizada pelo arcebispo de então, Manuel Baptista da Cunha, mas nunca conseguiu um espaço definitivo para instalar a colecção. Mais tarde, em 1905, Albano Belino defendeu a ideia de se criar um museu no castelo de Braga. “O castelo de Braga, com a estrutura de muralha, de torres e de torreões, tinha um edifício que era a antiga cadeia. No edifício, dava para fazer uma exposição. Era ouro sobre azul se esse museu no castelo tivesse sido viável”, considera Rui Ferreira.

No seio da colecção que doou à SMS, destaca-se uma peça encontrada em 1896, na freguesia de Semelhe: é um pedestal de uma antiga estátua com uma inscrição em latim, que constitui a referência mais antiga que se conhece aos cidadãos de Bracara Augusta, datando, segundo nota escrita pelo arqueólogo Francisco Sande Lemos, no âmbito da exposição organizada em 2005 sobre o investigador, de cerca de 3 ou 2 a.C..  

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