A Itália na batalha europeia

O governo de Roma proclama ter “eliminado a pobreza pela primeira vez na História”. Toda a política está já virada para as europeias de Maio de 2019.

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São raros os dias com boas notícias. Ontem, o Movimento 5 Estrelas (M5S) anunciava no Facebook: “Eliminámos a pobreza. Pela primeira vez na História.” É pena que seja uma notícia imaginária para consumo dos eleitores, com os olhos postos nas eleições europeias de Maio de 2019. Celebrava a aprovação da “lei financeira” que consagra a proposta-bandeira do seu programa eleitoral, o “rendimento de cidadania”.

O seu líder, Luigi di Maio, assinalou o “facto histórico” — o primeiro “orçamento do povo” — numa varanda do Palácio Chigi (sede do governo) perante o delírio de algumas centenas de adeptos. Na segunda-feira, tinha sido a vez de a Liga, de Matteo Salvini, fazer aprovar a sua “lei da imigração e da segurança”, mostrando que cumpre as suas promessas e recolhendo aplausos muito para lá do seu partido.

A fixação do défice em 2,4%, durante três anos, foi uma vitória de Di Maio e Salvini sobre o ministro das Finanças, Giovanni Tria, após um longo braço-de-ferro. Teve imediatos reflexos na bolsa e nos juros da dívida. Tria não se demitiu. Ele representa o “sentido da realidade” e a “máquina do Estado”, servindo de garante junto dos investidores e da UE. A demissão seria uma “arma atómica” que dificilmente poderia usar.

Nota relevante: a abertura de um contencioso com Bruxelas será capitalizada por Salvini e não por Di Maio.

Aliados e rivais

O “rendimento de cidadania” é o nome político de um subsídio. Não é universal (destina-se sobretudo ao Sul), não é igual para todos, nem aparece integrado num programa articulado de combate à pobreza. Pode beneficiar 6,5 milhões de italianos (mas não os imigrantes), com rendimentos abaixo do limiar da pobreza — 760 euros. Teria este mesmo valor, mas poderá ficar numa média de 560 euros. Para os críticos, é “um retrocesso ruinoso em direcção ao assistencialismo da I República” (Corriere della Sera).

O ponto mais polémico é o impacto no défice e nos juros da dívida. O comissário europeu Pierre Moscovici advertiu Roma: “Os italianos não se devem enganar. Cada euro a mais na dívida é um euro a menos para as auto-estradas, para escola, para a justiça social.”

O debate é retórico e inflamado. Di Maio proclama: “O nosso horizonte não é este ano ou o fim da legislatura, mas 2050.” Na realidade, o horizonte são as europeias de Maio. Massimo Giannini, colunista do La Republica, replica: “O ‘orçamento do povo’, de Di Maio e Salvini, por muito sedutor que seja na forma, arrisca-se a ser para o país um banho de sangue na substância.”

Que pensam os italianos? De momento, estão satisfeitos com o Governo — uma taxa de aprovação de 62%, a mesma de que Matteo Renzi gozava no primeiro ano de governo. A antiga “partidocracia” continua a ser execrada. A oposição desintegrou-se. O Partido Democrático (PD) é hoje uma espécie “em vias de extinção” (Roberto d’Alimonte). O berlusconismo sofreu uma hemorragia em favor da Liga.

Continua a lua- de-mel entre o Governo e o país. Contra isto não há argumentos. A coligação não tem adversários externos. O “inimigo” estará no interior da própria maioria, do ministro Tria aos conflitos entre os dois partidos.

O M5S e a Liga representam populismos distintos, e até irreconciliáveis, que se aliaram por uma razão simples: conquistar o governo. “Os cinco estrelas propõem-se resolver o problema da representação política e a rejeição da elite através da democracia directa. Salvini quer restituir o poder ao Estado nacional” contra as instâncias supranacionais (Giovanni Orsina).

Em termos económicos, o M5S, refém das promessas eleitorais, exige o aumento da despesa. A Liga, com a sua principal base no Norte, defende a redução da receita através dos impostos. As suas políticas de segurança são “mais baratas”. Representa uma nova direita, nacionalista, xenófoba e estatista. E, ao contrário do M5S, tem mais de duas décadas de experiência do poder. Não despreza a oportunidade de um confronto com a UE sobre o Orçamento. O risco está na explosão dos juros da dívida.

Aconteceu, entretanto, uma inversão na relação de forças: a erosão do M5S, que desceu de 32% para 28%, e a ascensão da Liga, que subiu de 18% para 32-34%. A Liga é o primeiro partido e, graças à imigração, Salvini afirmou-se como líder da maioria.

A incógnita é saber se a coligação se vai manter até às europeias de Maio. Vão concorrer separados e não haverá trégua. Salvini olha as sondagens que lhe dão a perspectiva de sair vencedor de eleições antecipadas. Mas, para governar, precisará de aliados. Pior está Di Maio. “Não pode afastar Salvini pela simples razão de que, se o afastar, reencontra-se pura e simplesmente na oposição, isto é, está liquidado” (Pasquale Pasquino). A crise do PD, para a qual muito contribuiu, deixa o M5S sem alternativas de aliança. Que acontecerá se a popularidade do Governo começar a baixar? Tudo isto passa pelas europeias de Maio.

A campanha das europeias

É algo que há muito sabemos: pela primeira vez, desde a eleição directa do Parlamento Europeu (1979), as eleições europeias ultrapassam o âmbito nacional para serem um voto sobre a Europa. Foi lançado um desafio pelo populismo soberanista, que vê no PE a instância ideal para pôr em causa a natureza da UE.

Durante meses, os soberanistas de todas as famílias, da direita nacionalista à extrema-direita, apostaram na ruptura do Partido Popular Europeu (PPE). Enfraquecido o grupo socialista, seria a oportunidade dourada para mudar o jogo. A ascensão do soberanismo nas opiniões públicas europeias é indiscutível e colocou os europeístas na defensiva. Uma vez mais, graças à imigração.

A politização das eleições de Maio assenta num facto simples: através do seu impacto na UE, os seus resultados condicionarão pesadamente as políticas nacionais.

A primeira batalha desta campanha travou-se em Bruxelas, a 12 de Setembro, quando o PE aprovou o princípio de sanções à Hungria: o PPE abandonou os parceiros húngaros. “A UE está dividida, mas já não está anestesiada”, disse alguém.

A segunda batalha está a desenrolar-se na Itália, o grande laboratório político da Europa Ocidental. O que se passa na Itália é inédito, não é o mesmo que as derrapagens do Leste europeu. A Itália e a Alemanha, onde o soberanismo aumentou a pressão e Merkel está ameaçada no próprio partido, serão os mais críticos “teatros de guerra”.

Na Itália o jogo não está pré-determinado. “Volta a subir a confiança na Europa por medo de a perder”, escreve o politólogo Ilvo Diamanti com base em sondagens recentes. A única previsão possível é que será uma batalha crescentemente dura, a começar no interior da maioria, e com um desfecho talvez surpreendente.

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