O melhor pai é ambos os pais

A realidade portuguesa é avassaladora: em mais de 90% dos casos a residência das crianças é atribuída à mãe.

“The best parent is both parents.”
W. Fabricius

Irá ser proximamente apreciada e debatida no Parlamento a petição proposta pela Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direitos dos Filhos pugnando pela presunção jurídica da residência alternada como opção primeira a tomar no caso de menores filhos de pais separados/divorciados. A realidade portuguesa é, neste domínio, avassaladora: em mais de 90% dos casos as responsabilidades funcionais e a residência das crianças são atribuídas à mãe, qual pena inexorável a condenar o pai no amanhã da separação conjugal. Mas quais os fundamentos desta regra iníqua que preside a esta crónica prática decisória pelos Tribunais de Família e Menores, estabelecendo uma espécie de ranking parental a partir de um privilégio de género, em que basta ser mulher? Qual o motivo pelo qual a separação dos pais conduz implacavelmente à privação de um deles da vida da criança – quando, de facto, estes se separaram um do outro, mas não dos seus filhos?

Interrogamo-nos acerca dos valores que intervêm nesta matriz de decisão judicial – e, mais importante ainda, quais as crenças e suposições que lhe estão subjacentes. Os alicerces desta regra iníqua parecem assentar no mito de uma pretensa especificidade materna no vínculo, no amor e nos cuidados prestados às crianças, por sua vez radicada na percepção acerca de perfis estereotipados dos homens e das mulheres, e destes na relação com os seus filhos. A mãe cuida da casa e dos filhos, o pai sai para ganhar o pão: resquícios anquilosados de valores há muito ultrapassados pelas dinâmicas sociais mas ainda pródigos em decisores incapazes de compreender que os contextos históricos, culturais e interpessoais que formatavam as relações interpessoais, e as dos pais com os seus filhos, se alteraram enormemente nos últimos 50 anos. Libertaram-se as funções e as emoções: as mulheres já não estão enclausuradas no lar, as obrigações são divididas. Os homens, ex-“chefes de família”, já não contêm os sorrisos, do brincar ao mudar das fraldas: para além de cuidadores competentes dos seus filhos, a generalidade deles assumiu o seu papel de insubstituíveis provedores afectivos junto das suas crianças.

O cenário pós-separação dos pais deveria reflectir o que previamente existia – isto é, o padrão de cuidados, proximidade e contactos relacionais que existiam antes dela suceder. Se tudo era partilhado anteriormente – dos cuidados às crianças até igual participação financeira na economia doméstica –, faz todo o sentido que tal se mantenha estruturalmente no cenário pós-separação, com as óbvias alterações. Mas o que sucede normativamente a seguir à separação conjugal? É atribuído o chamado “regime de visitas” – ou seja, o pai passa a ser visitante na vida dos filhos. Usufrui intermitentemente de umas migalhas de tempo com as suas crianças, numa punição provinda do nada, como se cumprisse castigo por pecado original. Uma condenação disfarçada por pretensa partilha de “assuntos de especial importância” na vida dos filhos – quando, de facto, o fundamental é a inclusão e participação no seu dia-a-dia.

Mas que envolvimento parental é possível nestas condições-pirilampo? Aqui, a quantidade traz qualidade. Ser pai a sério é muito mais do que ser visitante: é ser constante, participar plenamente, estar por dentro, ter momentos de ternura no deitar, no acordar, no contar de histórias para adormecer; disciplinar e, por vezes, contrariar, que também faz parte de educar. Quantos pais foram excluídos destes pequenos mas tão significativos actos? Como diz E. Kruk, “o verdadeiro problema para estas crianças e jovens não é o divórcio, é a perda de um dos pais”.

Tudo em nome do “superior interesse da criança”, esse sempre invocado farol que guia e molda as decisões. Mas o que sabemos acerca deste conceito?

Supostamente, deveria conter tudo o que beneficia a criança, o que lhe enriquece o quotidiano e a faz crescer harmoniosamente. Mas o que nos diz a Ciência? Tão ambíguo conceito deverá ser escrutinado pelos resultados de estudos científicos sérios, e não ser considerado de modo subjectivo e, até, aleatório. Ora, a evidência científica acumulada pela generalidade dos numerosos estudos transnacionais é irrefutável, esmagadora: a co-parentalidade está intimamente associada ao ajustamento e saúde física e psicológica das crianças, sendo o contacto igualitário com ambos os pais o critério maior facilitador da prossecução de itinerários de desenvolvimento harmonioso. Já no longínquo ano de 1977 a prestigiada Associação Americana de Psicologia (APA) aprovou uma importantíssima resolução, enviada aos mais altos ícones do poder judicial dos Estados Unidos, incluindo o Supremo Tribunal, na qual “se reconhece oficialmente e se promulga o facto de que não tem qualquer base científica, bem como constitui uma violação dos direitos humanos, a discriminação contra os homens por causa do seu género/sexo na atribuição da custódia de crianças, na adopção, nos cuidados a ter com crianças (...)” (APA, 1977). Muitos estudos depois, em 2014, o “estado da arte” é sintetizado no incontornável documento Social Science and Parenting Plans for Young Children: A Consensus Report, (Warshak, 2014), no qual 110 peritos de renome mundial, líderes na investigação nas áreas da vinculação e desenvolvimento infantil, concluem que “a evidência científica mostra que a guarda partilhada deve ser a norma no caso de crianças de todas as idades, incluindo crianças muito pequenas”, sendo a excepção os casos em que o pai ou mãe abusam e/ou negligenciam a criança ou a relação prévia com ela era inexistente ou periférica.

A Ciência deve constituir a referência orientadora junto dos pais, dos decisores, de todos os técnicos envolvidos. Qualquer abordagem que se pretenda centrada na criança não pode, de modo algum, ignorar a relevância do saber científico – o qual deveria determinar as decisões, furtando-as ao “totoloto” das meras convicções pessoais. Em países como a Suécia, Austrália, França, Brasil, Bélgica ou Holanda, entre muitos outros, a residência alternada é a regra: aqui, “os tribunais não podem presumir que alguém, apenas pelo seu sexo, seja mais qualificado do que o outro pai para cuidar dos filhos, sendo obrigatória a revelação das razões nos casos em que a co-parentalidade não foi atribuída”, conforme define a lei aprovada no Estado do Missuri (EUA), em vigor desde 2016. O Conselho da Europa, na sua resolução 2079 de Outubro 2015, cita que “os Governos devem introduzir nas suas leis o princípio da residência alternada em caso de separação”, enquanto o próprio Vaticano revela a sua preocupação através de frequentes referências por parte do Papa Francisco sintetizadas no importante artigo editorial publicado no jornal Avvenire, órgão oficial da Conferência Episcopal Italiana, em Dezembro de 2015.

Também em Portugal há indícios de que muito está a mudar, com uma crescente sensibilização e informação dos agentes intervenientes e da opinião pública. É verdade que com obstáculos decorrentes da rotina de muitos anos, incluindo mães pretendendo a todo o custo manter o poder da liderança parental, um fenómeno conhecido como gatekeeping – necessitarão de vir a ser avós para sentirem “na pele” a dor da exclusão dos seus filhos-homens e de toda a família paterna, incluindo elas próprias, do pleno contacto com os seus netos?

A igualdade de género é um enorme avanço civilizacional. A paridade entre mães e pais relativamente aos seus filhos insere-se neste mesmo domínio, onde não pode haver excepções baseadas em bafientos pré-determinismos acerca dos papéis sociais dos homens e das mulheres. Na certeza de que todos somos iguais perante a lei, e que são iguais os deveres e responsabilidades (e, também, a alegria) de sermos pais. Porque ser mãe e ser pai é para sempre.

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