Há 20 anos Ken Starr quis destituir um Presidente e agora escreveu um livro para nos lembrar de tudo

Foi há 20 anos que o relatótio sobre o comportamento de Bill Clinton foi apresentado - e desencadeou o primeiro processo de destituição presidencial em 130 anos. O seu autor relembra tudo o que se passou no livro Contempt: A Memoir of the Clinton Investigation.

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Ken Starr Mark Abramson/Washington Post

Estamos no dia 9 de Setembro, o domingo antes do 20.º aniversário do Relatório Starr - “… ela e o Presidente beijaram-se, e ele acariciou os seios nus com as mãos e a boca…” - e o autor está atrasado para a missa. Usa um fato azul, sem gravata e ténis Nike cinzentos.

“Vou escovar o que resta do meu cabelo”, diz.

Ken Starr é um homem educado. Em vez de dizer “inferno”, diz “tu sabes o quê”. Em vez de “adeus”, é “boa sorte”. Em vez de “Putin”, é “o bandido”. Gosta que o seu trabalho e o seu país joguem segundo as regras. Gosta de fazer as coisas da maneira correcta.

É um homem que ainda fala e parece e age como se estivesse a usar uma toga preta. Se a vida tivesse sido de outra forma – se George W. Bush não tivesse posto David Souter à sua frente na lista, se os Clinton não tivessem investido em propriedades à beira-rio – Kenneth Winston Starr poderia agora estar a chegar à sua terceira década no Supremo Tribunal, e o seu impacto na América teria sido emoldurado a dourado e adequado para mostrar numa prateleira, em vez de ser o que algumas pessoas vêm: uma nódoa numa almofada do sofá que foi virada ao contrário.

Relações entre mulheres e políticos. O suicídio de Vince Foster. Um mau negócio de terras chamado Whitewater. Travelgate, Filegate, Troopergate. Monica Lewinsky. Perjúrio. Obstrução à justiça. Sexo oral ao lado da Sala Oval. Starr era o conselheiro independente obstinado em chegar ao fundo da questão de metastatizar os escândalos de Bill Clinton que viu os dedos serem apontados na sua direcção. Viu-se acusado de uma “caça às bruxas”.

“Um pesadelo que não desaparece”, disse a mulher de Starr, Alice, na altura, quando estavam a viver em McLean, na Virgínia, sob protecção policial 24 horas por dia.

Tentar encontrar um sentido em tudo isto é como dobrar um lençol de elásticos.

A taxa de aprovação de Bill Clinton subiu, e reformou-se como um político experiente e respeitado. Hillary Clinton foi derrotada pelo homem em quem Starr votou.

E agora Starr, aliviado por os Clinton terem sido afastados de vez, está apertado na última fila da varanda da igreja de Times Square, em Nova Iorque. Abana-se suavemente ao som da música. Ouve o sermão do pastor sobre o Rei Salomão, como a sabedoria se pode transformar em arrogância e um homem se pode tornar um deus para si mesmo.

“Oh, Jesus, deixa-me terminar bem”, diz o pastor. "Mantém-me diligente. Não me deixes presumir que tudo está certo.” Starr aplaude juntamente com os outros congregados. Em certos assuntos, ele não presume. Ele sabe que está certo.

Também sabe que é culpado de orgulho.

“Como diz C.S. Lewis, o orgulho pode ser o pecado mais perigoso”, diz. “Por isso tenho muitas falhas e muitas com base no orgulho.”

Starr está de volta ao quarto de hotel no 43.º piso e deita água Pellegrino para um copo. Com Salomão em mente, menciona oseu  amor pelo Livro de Eclesiastes. Sabedoria. Loucura. Vaidade. Mais conhecimento, mais dor. Vida: uma corrida atrás do vento.

O seu queixo amadureceu. O cabelo ficou branco. As vogais são macias. Ainda tem aquele ar de professor e de pregador, mas mais gentil e feliz e mais amável do que o procurador que apareceu perante a Comissão de Justiça do Senado faz 20 anos este Outono. Tem 72 anos, é avô de sete netos, ainda exerce direito e é activo no que diz respeito à liberdade religiosa e imigração. É um mentor nas escolas públicas de Waco (Texas), onde vive.

Lyndon Olson Jr., um democrata do Texas que foi embaixador de Clinton na Suécia, não estava a pensar gostar de Starr quando se conheceram e disse-lho. Mas tornaram-se “grandes amigos”, diz Olson. “Tem sido um cidadão espectacular em Waco.”

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Ray Lustig/ The Washington Post

Agora Starr contou a saga que foi a sua vida num livro. A sua diligência e a sua rectidão não serão surpresas para ninguém. Quer relembrar-nos que o que procurou, em nome da verdade, não foi um culpado. Renega palavras como “redenção” e “reabilitação”. “Não vejo o livro como uma desculpa, de todo - diz -, é simplesmente um contar da história.”

Nascido no limite Norte do Texas, filho de um pregador, Starr deu o primeiro sermão aos 12 anos. Converteu-se ao conservadorismo durante um estágio no Capitólio. Fez um curso de Direito em Duke, foi nomeado juiz federal aos 37 anos e tornou-se procurador-geral sob a presidência de George W. Bush.

Abandonou o sector privado para analisar os escândalos que rodeavam os Clinton e via este trabalho como via todas as fases da carreira: um chamamento. Não planeava que durasse cinco anos e que desencadeasse um ataque de raiva nacional.

No fim, Starr e a equipa no Gabinete do Conselho Independente enviaram um relatório de 453 páginas (mais duas mil páginas com anexos) para o Congresso, fez agora 20 anos.

A linguagem sexual directa – reimpressa em jornais em todo o país e eventualmente um livro best-seller – foi um choque. Para muitos republicanos, foi a fisga que destruiu Golias. Para outros, foi um “trabalho volumoso sobre pornografia doentia”, nas palavras da jornalista Renata Adler. Desencadeou a primeira destituição presidencial em 130 anos – e, na opinião de Starr, responsabilizou um presidente que abusava dos poderes, com mais 14 pessoas que foram consideradas culpadas pela investigação.

Starr escreveu o livro para que as pessoas se lembrassem disso.

“O sistema funcionou”, diz.

O livro não se intitula "Fé no Sistema". Não tem o autor na capa, a olhar para o horizonte. Não, o livro intitula-se Contempt (desprezo), e o título está escrito num amarelo ictérico por cima de uma foto a preto e branco de Hillary a sussurrar ao ouvido de Bill.

O livro relembra às pessoas que Bill é o único Presidente dos EUA acusado de desrespeito ao tribunal e argumenta que Hillary merece a desconfiança da opinião pública que condenou as suas hipóteses nas presidenciais de 2016. “Presunçosa”, “arrogante”, “fraca”, “distante” e “mentirosa” são algumas das palavras que Starr utiliza no livro para a descrever, juntamente com “facilitadora”, uma acusação que Donald Trump utilizou durante a campanha.

Starr presumiu que Hillary iria ganhar. “Eu cheguei a dizer que teria de me mudar para a Austrália, porque ela ia ser a comandante”, diz Starr, rindo. “E ela é muito vingativa.” (O porta-voz de Hillary não respondeu ao pedido de comentário).

Qualquer que tenha sido a catarse ao escrever este livro, não livrou Starr do desdém pelos Clinton. O seu legado é o desprezo pela justiça, diz, e o seu é a procura dela, a qualquer custo.

A animosidade continua a ser mútua. “Os americanos viram-no através da perseguição obsessiva de Starr aos Clinton há 20 anos”, disse o advogado de Bill Clinton, David Kendall - que argumentou contra Starr em frente ao Congresso em Novembro de 1998 -, “e verão a sua tentativa de reescrever a história para se vingar pela sua reputação manchada.”

Estamos agora muito longe dos anos 1990 para podermos ter o panorama geral, mas ainda assim não podemos concordar com o que vemos.

“O caso que envolve Monica Lewinsky não devia ter recebido qualquer atenção”, disse ao podcast Slow Burn Bruce Udolf, o procurador que indiciou Starr. “E não teve qualquer utilidade.”

É fácil classificar o legado de Starr como um fútil combate, mas isso é incorrecto. Starr clama que as investigações, por muitas falhas que tenham tido, originaram um sistema mais forte para a responsabilização de todas as partes e deixou o actual procurador especial, Robert Mueller (que investiga se houve interferência russa nas eleições de 2016), em melhor posição para fazer o seu trabalho.

Depois existem os discípulos de Starr que chegaram aos cargos mais altos do governo. Rod Rosenstein, agora vice-procurador geral, trabalhou para o Gabinete do Conselho Independente. Alex Azar, o secretário dos Serviços de Saúde, também. Os nomeados de Trump para juízes federais incluem Karin Immergut, que interrogou Lewinsky à frente do júri, e Amy St. Eve, que julgou os investigadores de Whitewater, Jim e Susan McDougal, por fraude.

Outra razão por que Starr estava contente por ter votado em Trump: Brett Kavanaugh, que investigou o suicídio de Vince Foster e ajudou a escrever o Relatório Starr, estava, na altura desta conversa com o antigo procurador, prestes a ser confirmado para o Supremo Tribunal. [A confirmação foi suspensa para se ouvir uma mulher que o acusa de tentativa de abuso sexual quando ambos eram adolescentes].

“Ken Starr é de facto um herói”, disse Kavanaugh em Novembro de 1999, durante uma homenagem ao mentor. “Fazer a coisa certa, fazer o que é difícil, fazendo-o bem, aguentando os ataques… Ele ensinou-nos, no nosso gabinete, o que é ser o homem na arena.”

O sentido de dever de Starr, inspirador para os que faziam parte da equipa, é na verdade ofuscante na opinião dos que se encontravam na mira dele. No livro, Starr descreve Susan McDougal – que cumpriu pena na prisão – como uma desdenhosa cúmplice dos Clinton, uma descrição que ainda hoje a surpreende.

“Quando estás coberto de virtude é difícil ouvir”, diz McDougal a partir de Little Rock, no Arkansas. “Eu acho que ele ainda está a defender o seu caso. Não acredito que alguém acredite nele.”

Starr já ouviu isto tudo antes e segue o seu próprio conselho: sê forte; bloqueia o barulho; age com integridade. Porém, em 2016 o seu vigor foi novamente testado, quando foi despedido da Universidade de Baylor devido a uma investigação sobre a falta de capacidade da universidade em lidar com casos de agressão sexual.

“É uma questão, admito, de orgulho pessoal: fui despedido enquanto presidente mas demiti-me enquanto conselheiro”, diz Starr. “E não fui despedido com motivo. E essa é uma verdade. E também uma vaidade.” O fim do seu mandato na universidade, quase coincidindo com o fim da era Clinton, permitiu que escrevesse Contempt.

E na última véspera de Natal, num restaurante em Manhattan, Ken Starr finalmente conheceu Monica Lewinsky. A família dela acabara de cantar músicas de Natal em Gramercy Park, e a família dele estava a chegar ao fim de um jantar antes da missa.

De onde é que o conheço?, pensou ela.

Ela parece-se muito com a Monica, pensou ele.

Houve contacto visual.

Aqui está o homem que transformou a minha vida num inferno quando eu tinha apenas 24 anos, pensou ela.

Isto é constrangedor, pensou ele.

Ela diz que deram um aperto de mão. Ele diz que não. Num artigo publicado na Vanity Fair, Monica descreve o seu comportamento como “quase bucólico”, quase entre “parental e sinistro”. No livro, Starr descreve o encontro como “agradável mas intenso”. Ela culpa-o por ter aterrorizado a sua família para poder destruir uma presidência – mas em voz alta, apenas lhe disse que desejava que ambos tivessem feito escolhas diferentes. Ele ainda quer que ela culpe Clinton por ter feito dela “a vítima mais visível” do seu desprezo pela lei – mas em voz alta Starr apenas lhe desejou tudo de bom.

Starr diz no livro que Lewinsky, através de uma lealdade insensata, "permitiu tornar-se uma trágica figura". Na realidade Lewinsky, agora com 45 anos, transformou a própria angústia numa campanha anti-bullying e atingiu um elevado nível moral. Declinou através de um representante tecer comentários para este artigo. Realmente, porque o faria?

Starr, pela sua parte, deseja que a interacção tivesse sido mais substancial. Teria aceitado de bom grado sentar-se com Monica e submeter-se ao seu interrogatório. Ainda não se encontrou com os Clinton mas também aceitaria fazer o mesmo com eles.

“Vocês, primeiro”, diria, e depois ouviria com a calma de um homem que já sabe qual será a sua resposta.

Tradução de Ana Silva

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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