Que relevância assumirá o género atrás das grades?

Dois livros lançados neste ano abordam a relação entre género, crime e sistema de justiça.

As perguntas foram surgindo em conversas. Quanto pesarão as desigualdades de género na vida de raparigas e mulheres e na sua relação com o sistema judicial? Que associação existirá entre vitimização e prática de crime? Haverá uma narrativa única sobre género e crime ou a narrativa mudará conforme os crimes ou as situações? Que relevância assumirá o género atrás das grades?

Partindo destas inquietações e da vontade de partilhar estudos feitos, as investigadoras Sílvia Gomes e Vera Duarte procuraram uma base comum. Em 2013, organizaram um painel numa conferência. Agora, coordenaram um livro. 

Female Crime and Delinquency in Portugal — In and out of the criminal justice system [Crime e Delinquência no Feminino em Portugal — Dentro e fora do sistema de justiça criminal] saiu neste Verão. E não é por acaso que foi editado em inglês. As investigadoras queriam abrir o diálogo ao público internacional.

Feliz coincidência: pouco antes, saiu o livro Ala Feminina, da jornalista Vanessa Ribeiro Rodrigues. E esse resulta de conversas com 17 mulheres reclusas em duas prisões femininas, as portuguesas Santa Cruz do Bispo (Matosinhos) e Tires (Cascais), e numa mista, a brasileira Talavera Bruce (Rio de Janeiro).

Em várias entrevistas, Vanessa Ribeiro Rodrigues foi dizendo que as reclusas “falam constantemente dos laços afectivos”. “Ao contrário da reclusão masculina, a reclusão feminina tinha uma característica, que era o facto de elas não perderem os laços afectivos com os filhos, a família e viverem uma dupla punição”, disse à Lusa.

A minha experiência jornalística em prisões leva-me a concordar com Vanessa Ribeiro Rodrigues. E o livro coordenado por Sílvia Gomes e Vera Duarte — que junta dez estudiosas numa reflexão multidisciplinar sobre a relação entre género, crime, delinquência e sistema de justiça — aprofunda o porquê disso.

Foto

Explica a antropóloga Manuela Ivone Cunha que na primeira metade do século XX “a principal preocupação” do sistema prisional era a “regeneração moral” das mulheres. A reabilitação baseava-se em “dois ingredientes fortemente ancorados nas ideologias de género dominantes: domesticidade e maternidade”.

Na década de 80, quando esteve pela primeira vez a fazer trabalho de campo em Tires, viu como o sistema prisional continuava a exaltar os papéis tradicionais. “Se os serviços de lavandaria, limpeza e cozinha eram superdimensionados, era apenas porque deveriam responder não apenas às necessidades internas, mas também às da prisão masculina mais próxima”, escreve.

Os trabalhos subsequentes permitiram-lhe verificar que a lógica não se alterou muito. Ainda agora, na mais moderna prisão do país, Santa Cruz do Bispo, as actividades continuam a ser muito centrados no suposto universo feminino.

Durante o Estado Novo, a licença para manter crianças pequenas na prisão “era principalmente justificado pelo objectivo de educar as mães”. Enquanto expiavam pena, deviam passar tempo com os filhos e aprender a desempenhar o seu papel.

Hoje, o que justifica a permanência até aos três anos (excepcionalmente até aos cinco) nas prisões é o superior interesse das crianças. Dentro do perímetro do estabelecimento prisional, há creches onde podem ficar, enquanto as mães estudam e/ou trabalham. No dos homens continua a não haver. 

“As prisões femininas, como Tires, promovem a exaltação da maternidade”, nota Manuela Ivone Cunha. “O vínculo mãe-filho é altamente idealizado, desligado das experiências reais, da dura realidade das reclusas.”

A antropóloga entende que é atrás das grades que aquelas mulheres “encontram o tempo, a estrutura ou os recursos necessários” para alcançar o ideal de maternidade. E não a surpreende que “esse ideal contribua para aprofundar sentimentos de culpa, inadequação e disfuncionalidade na realização do papel materno”. Por um lado, a maternidade é amiúde invocada como mote do crime (“Eu fiz isso pelas minhas crianças”; “Eu tinha de alimentar os meus filhos”). Por outro, as reclusas “culpam-se, e são culpadas pelo pessoal da prisão, não só por terem cometido o crime, mas também por não cumprirem as responsabilidades maternais”. Curiosamente, as prisões não estão preparadas para acomodar as crianças que, vivendo fora, visitam as mães ou os pais.

Foto

Vale a pena perceber quem está atrás das grades. Há uma espécie de ligação directa entre os bairros de má fama e as prisões. Reflectindo a organização da venda de droga e as prioridades da vigilância policial, intramuros abundam laços de parentesco, amizade ou vizinhança. Para Manuela Ivone Cunha, a proeminência da identidade de género na prisão “deu lugar a um novo sentido de identidade colectiva, baseado na proveniência comum das mesmas áreas urbanas indigentes”. “Solidariedades colectivas baseadas em classes ganham força no cenário prisional e tornaram-se uma importante faceta da identidade social das pessoas presas.”

As mulheres não são só mulheres. Num dos capítulos do livro que co-coordenou, a socióloga Sílvia Gomes sublinha a importância de cruzar o género com variáveis como a idade, a etnia, a nacionalidade e a classe social.

As mulheres são uma minoria nas prisões portuguesas (como nas prisões do mundo inteiro). No início de Setembro, eram 810, o que significa cerca de 6% da população prisional. As estrangeiras, porém, estão sobrerrepresentadas. Os estudos de Sílvia Gomes mostram que os seus trajectos não estão desligados da exclusão, da desigualdade, do preconceito, do racismo. “Elas são especialmente vigiadas por agentes da justiça criminal porque são pobres, vivem em bairros urbanos particulares e apresentam um fenótipo diferente”, escreve.

Isto é só um pouco do que se pode encontrar em Female Crime and Delinquency in Portugal — In and out of the criminal justice system (Palgrave Macmillan) e em Ala Feminina (Desassossego). São dois livros valiosos para quem se interessa por estes temas.

Sugerir correcção
Ler 5 comentários