Dois cravos históricos construídos pelos irmãos Antunes no século XVIII voltam a soar no Museu da Música

Um recital a dois cravos, por José Carlos Araújo e Miguel Jalôto, dará a ouvir pela primeira vez, após o restauro, o cravo construído por João Baptista Antunes em 1789.

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À frente: cravo de João Baptista Antunes de 1789. Ao fundo: cravo de Joaquim José Antunes de 1758 (Tesouro Nacional) dr/foto cedida pelo Museu da Música

O próximo concerto do ciclo com instrumentos históricos Um Músico, Um Mecenas, organizado pelo Museu Nacional da Música (este sábado, às 18h), pode considerar-se um acontecimento excepcional por diversas razões.

Por um lado, trata-se da estreia pública do cravo construído em Lisboa por João Baptista Antunes em 1789 (um instrumento que se encontrava nas reservas do museu há mais de 70 anos em mau estado de conservação) após o restauro efectuado por Geert Karman.

Por outro, este instrumento de grande valor patrimonial e artístico (um dos poucos exemplares que testemunham a arte da família Antunes, cujos membros se distinguiram como exímios construtores de cravos e pianofortes na Lisboa do século XVIII) será ouvido em diálogo com o seu irmão bem mais conhecido e classificado como Tesouro Nacional: o cravo Joaquim José Antunes de 1758.

Para o programa A Due Cembali – Os Irmãos Antunes, os cravistas José Carlos Araújo e Miguel Jalôto seleccionaram um conjunto de obras para dois cravos (entre peças originais e arranjos) relacionadas com o contexto histórico dos instrumentos, dando assim vida a uma prática habitual na época barroca que é actualmente preterida em favor dos recitais a solo. Serão interpretadas obras de Carlos Seixas, Soler e Boccherini.

Os dois cravos que poderão ser ouvidos esta tarde são os únicos exemplares originais portugueses que se encontram em Portugal e dos poucos que sobreviveram em todo o mundo. Da família Antunes conhece-se ainda um pianoforte que pertence ao National Music Museum em Vermillion (South Dakota, EUA) e um cravo que até há pouco tempo se encontrava na Finchcocks Collection, em Kent, Inglaterra, como parte da colecção de Richard Burnett, que o havia adquirido num leilão da Sotheby em 1985. Em 2016, a colecção de Burnett foi leiloada e o cravo português (Joaquim José Antunes, 1785) foi novamente vendido a particulares sem que o Estado português o tivesse adquirido.

Enquanto o cravo de 1758, de Joaquim José Antunes (1733-1801), é conhecido como uma das jóias do Museu da Música, tendo sido usado em várias gravações (a primeira, em 1987, foi um CD com Sonatas de Carlos Seixas interpretadas por Cremilde Rosado Fernandes), o cravo de 1789, construído numa época em que o pianoforte estava já bastante em voga na Europa e em Portugal, era quase desconhecido até agora.

As suas características únicas (como a extensão de teclado mais longa do que o habitual, indo até ao lá sobreagudo), a qualidade tímbrica e precisão do mecanismo prometem colocá-lo no mapa mundial dos instrumentos de tecla históricos. Geert Karman, construtor e restaurador holandês que desde 2009 tem um atelier (Pipart) em Portugal, refere, segundo o comunicado do Museu da Música, que o som “é um dos mais belos” que já ouviu entre os instrumentos que conhece nos museus de todo o mundo. Salienta ainda que “a mecânica é uma das mais precisas com que já lidou”.

A família Antunes

Uma outra novidade é o esclarecimento da autoria do instrumento. Até há pouco tempo pensava-se (ainda que sem certezas) que teria sido construído por Manuel e Joaquim José Antunes. Recentemente, as investigações da historiadora Ana Paula Tudela, autora de um estudo sobre a família Antunes, que será lançado a 22 de Novembro pelo Museu Nacional da Música e pela Imprensa Nacional, permitiram concluir que o cravo de 1789 (adquirido pelo museu em 1944) se deve a João Baptista Antunes (1737-1822).

“Ao estudar os percursos e caligrafias dos diversos mestres desta família consegui demonstrar que os dois instrumentos [de 1758 e de 1789] foram construídos por dois irmãos, filhos de Manuel Antunes (1703-1766), fundador da emblemática oficina portuguesa Antunes, cuja excelência é internacionalmente reconhecida”, refere Ana Tudela. “É bonito pensar que os dois instrumentos tocarão juntos provavelmente pela primeira vez”. Segundo a historiadora, a actividade profissional dos Antunes envolveu pelo menos sete membros da família e estendeu-se por cerca de 150 anos. Ana Tudela tem estudado também outros importantes construtores activos em Portugal do ponto de vista biográfico e socioprofissional (como os organeiros Fontanes e Machado e Cerveira e “mestres de fazer cravos” como João Elvenich e Mathias Bostem, entre outros).

No recital deste sábado, com entrada livre, os dois “cravos irmãos” poderão ser ouvidos em conjunto na interpretação de Sonatas de José António Carlos de Seixas (1704-1742), transcritas para dois cravos por Miguel Jalôto; nos Quartetos op.26 nº1 e op. 26 nº 5, de Luigi Boccherini (1743-1805), em transcrições para dois cravos de um anónimo setecentista; e no Concerto III, de António Soler. Fundador e director artístico do Ludovice Ensemble e membro da Orquestra Barroca Casa da Música, Miguel Jalôto tem desenvolvido também uma carreira a solo como cravista e colaborado com prestigiados grupos internacionais especializados nas práticas interpretativas históricas. Gravou para as etiquetas Ramée/Outhere (com o Ludovice Ensemble), Brilliant Classics (integral das Suites para Cravo solo de Dieupart), Dynamic, Harmonia Mundi France e Glossa, entre outras.

José Carlos Araújo apresenta-se frequentemente em recitais a solo em instrumentos históricos (órgão, cravo, clavicórdio e pianoforte) e tem colaborado com diversas orquestras e agrupamentos portugueses. A música para tecla ibérica do período barroco ocupa um lugar central no seu percurso, no qual se salienta a inauguração do selo discográfico Melographia Portugueza (MPMP) em 2012, com os primeiros CD da primeira gravação integral da produção para tecla de Carlos Seixas.

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