O perigo principal não vem dos negacionistas mas sim dos apáticos e dos indiferentes

A resolução do problema das alterações climáticas está ao nosso alcance através de políticas públicas bem desenhadas e bem implementadas.

No momento em que escrevo este artigo de opinião decorre o primeiro de dois dias dedicados à conferência Basic Science of a Changing Climate, organizada pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Esta conferência foi recentemente objecto de uma anormalmente grande exposição mediática, muito maior do que qualquer outra conferência científica - ou assim apresentada - em memória recente. Gerou grande celeuma e indignação na sociedade civil e não faltaram mesmo vários apelos ao seu cancelamento. E porquê? Porque foi organizada por uma entidade pública como uma plataforma dos negacionistas em matérias de alterações climáticas. Em particular, espera-se que a conferência veicule pontos de vista onde se recusa reconhecer o papel da actividade humana nos efeitos perniciosos quer das emissões de CO2 quer de outros gases de efeito de estufa (GEE). Para eles, o ser humano simplesmente não é o actor responsável por estas alterações. 

Quem me conhece, ainda que muito vagamente, sabe que há pelo menos uma década que tenho dedicado uma boa parte da minha investigação e actividade de intervenção pública às questões de como desenhar e como implementar políticas fiscais economicamente sensatas, com vista a reduzir as emissões de CO2 e, por esse meio, fazer de Portugal um agente de mitigação das alterações climáticas. A minha perspectiva nestas matérias é portanto muito clara. Os pontos de vista negacionistas desta conferência não me suscitam a menor simpatia, para além de uma filosófica defesa do seu direito pleno de expressarem livremente a sua opinião - desde que não seja financiado pelo erário público. Contudo, esta minha experiência também me faz acreditar que os grandes entraves à descarbonização profunda da economia portuguesa não vêm dos negacionistas. Muito pelo contrário – a sua existência pode e deve levar a uma indignação proactiva da sociedade civil. Mas já lá vamos.

Permitam-me uma explicação. Apesar das declarações mais ou menos bem-intencionadas, uma boa parte da nossa classe política continua a desconsiderar as alterações climáticas e a sua causa humana como uma questão de charneira nas principais tomadas de decisão. Continuam, portanto, a comportar-se politicamente precisamente como se fossem os negacionistas desta realidade.

Pensemos, por exemplo, na questão do preço da energia em Portugal e como é encarada e tratada no debate de política económica. São ubíquos os argumentos a favor da promoção de energia mais barata e, portanto, abundam os apelos, de um ou outro modo, à descida dos preços da energia. Naturalmente os argumentos diferem segundo os quadrantes políticos de onde provêm. Para uns, trata-se uma questão de eficiência económica. Preços de energia baixos são fundamentais para um maior crescimento económico e o aumento da nossa competitividade. Os nossos preços de energia por serem tão elevados estrangulam a economia. É um argumento que, em si mesmo, tem algum mérito. Para outros, mais à esquerda, é uma questão de justiça social. O elevado custo da energia afecta desproporcionalmente as famílias mais desfavorecidas e, portanto, as mais vulneráveis do ponto de vista económico. É que o consumo de energia é fundamentalmente regressivo, dizem. Por serem tão elevados, os preços de energia estrangulam financeiramente as famílias mais vulneráveis. Este é também um argumento que em si mesmo tem algum mérito.

Mas, por muito mérito que qualquer um destes dois argumentos possam ter – e têm, como disse –  há também que reconhecer que são argumentos demasiado estreitos no seu âmbito, precisamente porque são excessivamente focados nos custos e nos benefícios presentes. Por ignorarem ou por menosprezarem em demasia a inevitabilidade, a prazo, de uma profunda descarbonização da economia portuguesa. Isto porque a realidade é que as alterações climáticas não só existem, como são essencialmente o resultado da acção humana através das emissões de CO2 e de outros GEE.

Ao introduzir a necessidade de uma profunda descarbonização a médio e longo prazo nesta equação de política económica, temos todos de reconhecer, de imediato, não só que o futuro já não será um de energia de origem fóssil barata, como também que as energias renováveis podem ainda levar algum tempo a serem realmente abundantes e baratas. Um futuro de energia barata é e será por muito tempo apenas uma miragem.

Assim sendo, insistir em energia barata é remar hoje contra a maré do amanhã. Quem reivindica energia barata hoje vai muito em breve ter de se debater com uma de duas alternativas. Ou reconhece que, na realidade, também pertence ao grupo dos negacionistas, e assim pode continuar a defender indiscriminadamente a redução do preço da energia. Ou, então, assume-se como ‘afirmacionista", colocando-se ao lado da vasta maioria da comunidade científica, em cujo caso o discurso político tem de ser temporalmente consistente e responsável: isto é, tem de ser invertido em 180 graus, passando a defender que, afinal, o embaratecimento da energia é, pelo menos para já, apenas uma miragem: os preços da energia de origem fóssil têm de – e vão – aumentar substancialmente e teremos de suportar preços de energias renováveis que podem ser relativamente caros por muito tempo.

E note-se, por exemplo, como as considerações da envolvente ambiental estão completamente ausentes do debate político que hoje decorre sobre os preços dos produtos energéticos e os impostos que incidem sobre os diferentes tipos de energia, em termos da sua proveniência. Note-se, também, como, apesar das ocasionais palavras no sentido certo da descarbonização da economia, os esforços do anterior governo foram entre os ‘não existentes’ e os ‘excessivamente tímidos’, enquanto as iniciativas do actual governo são, até ao momento, pouco mais que cosméticos. Para além de hipotecar o futuro, tentando agradar às gerações presentes, esta é uma política irresponsável que falta à verdade, ou pelo menos se recusa a reconhecer o que a grande maioria da comunidade científica já concluiu.

E esta é uma boa ilustração das razões pelas quais penso – por muito politicamente incorrecto que pareça e por muito desconforto que possa gerar – que, verdadeiramente, os grandes óbices à necessária descarbonização da nossa economia não vêm dos negacionistas. Vêm sim da indiferença e da apatia de uma classe política que recusa enfrentar o problema e da inércia das nossas políticas com vista à descarbonizacão. Na verdade, vem de todos nós: fica bem atacar os negacionistas, mas depois quando é necessário alterar o nosso comportamento, aí, na prática não nos distinguimos deles.

Não sendo minha intenção baralhar o leitor, também não quero deixar no ar ambiguidades nas minhas opiniões sobre estas matérias. Assim, e para terminar, deixo três clarificações importantes para que não restem dúvidas sobre a minha posição. Primeiro, preços da energia elevados não são um objectivo em si mesmos – nem mesmo quando ajudam ao equilíbrio das finanças públicas - e só são directamente relevantes para a descarbonizacão da economia na medida em que reflictam o conteúdo carbónico da energia e, portanto, penalizem as emissões correspondentes ao seu uso. Segundo, e como corolário do ponto anterior, ao contrário de outras formas de energia final, a promoção de electricidade barata produzida a partir de fontes renováveis terá de ser uma peça fundamental no processo de descarbonizacão. Terceiro, e finalmente, os preços elevados da energia de origem fóssil, sendo inevitáveis num processo de descarbonização, terão custos económicos e sociais muito importantes, que deverão ser necessariamente acompanhados por medidas compensatórias, noutras margens que não nos preços da energia, com vista a proteger o crescimento da economia e a sua competitividade externa, por um lado, e a justiça social por outro.

Em suma, este artigo de opinião é um alerta à classe política: não é necessário – nem é desejável – ter um comportamento efectivamente negacionista; a resolução do problema das alterações climáticas está ao nosso alcance através de políticas públicas bem desenhadas e bem implementadas.

Cidadania Social – Associação para a Intervenção e Reflexão de Políticas Sociais – www.cidadaniasocial.pt

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