A carta singular

As coisas que nunca mais acontecem são determinantes, como a morte. Os exemplos por si pouco interessam mas, disfarçados de coisas mesquinhas, têm muito para ensinar.

As coisas que nunca mais acontecem são determinantes, como a morte. Os exemplos por si pouco interessam mas, disfarçados de coisas mesquinhas, têm muito para ensinar.

Na quarta-feira comi as maiores e melhores cartas da minha vida. As cartas são peixes exíguos e fininhos de carne. Fazem lembrar linguadinhos sem sabor. Fritam-se muito bem fritos para adquirirem alguma graça.

Mas estas cartas eram enormes. Cada uma tinha seiscentos gramas. A dose normal costuma ser duas ou três cartas. Na quarta-feira era uma carta por pessoa, por ser tão grande. Soube assim, pela primeira e última vez na vida, o que era uma carta singular.

Era uma maravilha, era o que é. A grossura da carne permitia perceber qual era o sabor duma carta. Era parecido com o da abrótea, mais do que da solha. Tinha a textura dum rodovalho.

Isto sim era uma carta. As anteriores que conheci eram só mails.

Era tão boa que voltámos lá para jantar tal e qual tínhamos almoçado. Um co-conspirador que já lá estava a bater-se com uma levantou-se da mesa e disse, com toda a razão: "temos tema para a crónica do PÚBLICO".

A melancolia vem de saber que nunca mais verei uma carta daquele tamanho. Ficará para sempre como contra-prova de todas as cartas inferiores que me restam: "lembras-te daquelas cartas que comemos em Setembro de 2018? Essas é que eram mesmo boas."

Se calhar, não se deveriam aceitar coisas tão fora do normal, para não estragar todas as futuras. Por outro lado, mostra que às vezes, sim, sabemos o que perdemos.

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