O vazio e as coisas

Sonho com uma casa em que todas as salas tivessem prateleiras só até onde as mãos chegam.

Sonho com uma casa em que todas as salas tivessem prateleiras só até onde as mãos chegam. As estantes até ao tecto têm o terrível defeito de exilar grandes quantidades de livros cujos títulos não conseguimos ler, condenando-os à impotência.

Outra estupidez minha é fazer duas filas de livros com os mais altos por dentro para — reza a teoria enganosa — se poderem ver as lombadas de ambas as filas. Na prática só se vêem os títulos dos livros pequenos.

Quando fomos viver para o Banzão tínhamos tantos caixotes de livros num armazém que não arranjámos, durante um ano inteiro, coragem para transferi-los para as estantes da nova casa.

No meu escritório fiquei com três grandes estantes vazias. Fui enchendo-as de tudo o que queria guardar, desde livros novos a pedrinhas da praia, máquinas fotográficas, pinturas, frascos de perfume, flores, latas de bolachas, cadernos, canetas e todas as tralhas do dia-a-dia.

Foi maravilhoso dispor de tantas superfícies para ocupar. Estava tudo à vista e à mão. Desde o princípio tratei as estantes como composições, mudando os materiais até ficarem como eu queria. Depois passei para uma fase em que me divertia a ver os resultados estéticos da acumulação aleatória.

Era bom estar rodeado das coisas que me iam acontecendo. Ajudava-me a escrever. Dava-me vontade de ir enchendo também o ecrã do computador de palavras apanhadas de sítios diferentes da minha cabeça.

Agora tenho todas as estantes ocupadas e os livros parecem-me presos, sem saber pedir socorro.

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