A internacional nacionalista e a pós-democracia

O consenso fabricado ao centro foi em grande medida responsável pelo reaparecimento da extrema-direita.

A Europa navega hoje entre dois perigos: a Cila do abandono puro e simples a um projeto tecnocrático obedecendo aos ditames do neoliberalismo, em que a sensação que se tem é que as instituições funcionam de forma opaca, “à porta fechada”, e parecem muitas vezes ser mais sensíveis aos interesses dos “mercados” do que à vontade política expressa democraticamente pelos cidadãos; e a Caríbdis de um retorno aos velhos nacionalismos, alimentado pelo discurso fácil e, infelizmente, apelativo para uma parte da população europeia, dos nacionalistas e populistas de direita, enlevados pelo sucesso transatlântico de Trump.

A forma de funcionamento pouco clara da troika e, sobretudo, a gestão da crise grega foram um exemplo paradigmático do primeiro perigo. Já o sucesso eleitoral efetivo de figuras como Orbán, ou a perene ameaça de sucesso da família Le Pen e o facto de opções políticas deste género conseguirem contaminar a opinião pública e influenciar as decisões europeias, são um sinal claro da segunda tendência. E um exemplo paradigmático dela é a forma como a União Europeia não tem conseguido estar à altura das suas responsabilidades em matéria de acolhimento de refugiados, naquilo que é claramente uma cedência ao discurso xenófobo.

Ambas as tendências são perniciosas mas seria um erro grave considerá-las equivalentes. O projeto neoliberal é problemático para a democracia porque funciona tendo como base o fabrico de um consenso que se vende como sendo inevitável: o famoso T.I.N.A. (não há alternativa) popularizado por Thatcher. Nesse sentido ele é, até certo ponto, como argumenta Chantal Mouffe, “pós-político” porque os partidos do grande “consenso do centro” que o apoiavam não demonstravam diferenças políticas significativas entre si e, portanto, deixavam no eleitorado a sensação que “ganhasse quem ganhasse, era tudo igual”. E esta foi com certeza uma das causas do aumento da abstenção ao longo dos anos: havendo a perceção de que a política era feita pelos políticos, e não pelos cidadãos comuns, tanto mais quanto se cria que no fundo tudo era decidido pelas elites e a elas se imputavam todos os males, o envolvimento cívico tendia a dissipar-se.

É certo que este projeto é problemático e deve ser criticado em muitos pontos. Mas o que surgiu em resposta, vindo da extrema-direita, é mil vezes pior. Juntando uma crítica da globalização (a qual até tem razão nalguns pontos) a um discurso muitas vezes xenófobo e a raiar o ódio, totalmente anticosmopolita e antagónico em relação aos seus outros, os nacionalistas e populistas de direita conseguiram que se tornasse pensável uma situação política “pós-liberal” e atentatória dos princípios do Estado de direito, incluindo a divisão de poderes e as liberdades e garantias atribuídas a cada cidadão. É este o caso das chamadas “democracias iliberais”, termo popularizado por Fareed Zakaria, e que descreve as situações políticas em que há formalmente eleições, mas muitas das liberdades são cerceadas e alguns direitos fundamentais desrespeitados.

Digamos, então, o óbvio. O consenso fabricado ao centro foi em grande medida responsável pelo reaparecimento da extrema-direita, que soube capitalizar a insatisfação de parte dos eleitorados tradicionais dos partidos de esquerda. E permitir diferenças significativas entre projetos políticos faz parte de qualquer democracia sã. Mas isso não pode incluir a normalização do discurso dos populistas e nacionalistas de direita que, se chegados ao poder, e sendo iliberais, significariam já não só uma “pós-política” que, ainda assim, joga o jogo democrático. Eles seriam verdadeiramente uma “pós-democracia”, isto é, o fim da democracia e das liberdades e direitos fundamentais que definem a nossa civilização e a nossa decência.

Por paradoxal que possa parecer, a “internacional nacionalista” está aí, e está a organizar-se. Isso é claro na intenção, expressa por Steve Bannon, de criar uma fundação para ajudar os movimentos nacionalistas. E a forma como, a seguir a Trump, tudo se parece “normalizar” no espaço público, incluindo a possibilidade de se dar palco a figuras políticas com discurso xenófobo e, logo, legitimá-las tacitamente, mostra quão frágeis são as nossas democracias. O affaire Web Summit/Le Pen, o qual, com a postura hesitante da organização da Web Summit, e a atribuição e retirada sucessiva do convite a Le Pen, seria cómico, se não fosse trágico. Mas não é o único. E é sinal de uma desorientação própria de épocas em que o mal se parece banalizar sem causar estranheza. A Europa já passou por isso antes. Tomemos cuidado, para que não volte a acontecer.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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