Os esclarecimentos em chamas

O livro Portugal em chamas é um panfleto político, e não um livro técnico, em que os factos interessam muito pouco se não puderem ser alinhados com a propaganda.

“Não se pode atacar a credibilidade técnica de um livro utilizando para isso uma frase que nem sequer existe no mesmo”, queixa-se, amargamente, Paulo Pimenta de Castro, acusando-me de não usar argumentos, mas apenas adjectivos e frases truncadas como fundamento para dizer que o livro que co-escreveu com João Camargo é tecnicamente muito, muito mau.

Da frase “Há cerca de mil anos, as florestas naturais de Portugal tinham basicamente desaparecido, excepto em algumas zonas de declives acentuados, mas as florestas de carvalho dominavam o país, de uma forma geral com carvalho-roble, carvalho-negral e carvalho cerquinho (com algum pinheiro) a norte do Tejo e sobreiros, azinheiras e pinheiros-mansos a sul”, usei, a mero título de exemplo da total ausência de qualidade técnica do livro Portugal em chamas, a parte em itálico.

O artigo que escrevi sobre o livro não pretendia ser uma recensão técnica do livro, mas refutar a sua tese central de que o eucalipto, em Portugal, se expande a reboque do Estado como defendem os autores do livro.

Para fundamentar a minha ideia de que estamos perante um panfleto político, e não um livro técnico, usei um único exemplo, que fundamentei em duas fontes de informação inatacáveis, para além de um comentário pessoal (autorizado) de um dos autores dessas fontes, botânico cuja autoridade científica é absolutamente inquestionável em matéria de vegetação potencial natural do país, exemplo esse que é claríssimo na demonstração de que os autores do livro não tiveram a menor intenção de deixar que os factos influenciassem minimamente o que queriam escrever, de tal maneira o erro é grande e patente para qualquer pessoa que percorra o país, vendo sobreiros quase por todo o lado.

O texto citado é tão manifestamente errado que, por ser das primeiras páginas do livro, achei, durante algum tempo, que era uma gralha, o que o resto do livro veio a desmentir: era mesmo o nível do padrão de qualidade técnica do livro.

Eu trunquei a frase, tirando-a do contexto, argumentam.

Não há contexto possível que torne aceitável a ideia de que o sobreiro, agora ou há mil anos, é uma árvore do Sul do país, como decorre do texto citado, mas o contexto que agora transcrevi e que na altura evitei por vergonha alheia, apenas acentua a ideia da completa indigência técnica do livro: os autores conseguem dizer, na mesma frase, que as florestas naturais tinham desaparecido mas as florestas de carvalho dominavam o país, ou seja, dizem, ao mesmo tempo, duas coisas simplesmente absurdas –? que as florestas de carvalhos não são as florestas naturais de Portugal e que tendo desaparecido as florestas naturais, alguém tinha andado furiosamente a plantar carvalhos, de tal forma que dominavam o país.

Poderia ser um parágrafo infeliz, acontece-nos a todos, e por isso vejamos outros exemplos.

“Estima-se que para construir os cerca de 2500 navios que serviram para criar o império colonial e manter um circuito comercial constante de matérias-primas e escravos terão sido necessários (sic) mais de cinco milhões de árvores.”

Saltemos por cima da falta de citação da origem destes números (Jorge Paiva, por exemplo, usa-os frequentemente) e verifiquemos que cinco milhões de árvores, em seis milhões de hectares disponíveis, representam menos de uma árvore por hectare, num período de pelo menos 200 anos. Resumindo, os autores acham que um dos factores de desarborização do país é cortar uma árvore por hectare a cada 200 anos.

“A generalidade dos estudos para os incêndios em Portugal revela uma selecção preferencial de tipos de vegetação pelo fogo, em particular para as fases iniciais dos fogos: matos, pinheiros e eucaliptos. (...) A ideia de que o eucalipto é uma espécie que arde de maneira igual às outras é falsa. O eucalipto arde mais do que a maior parte das espécies existentes em território nacional.”

Poderia continuar a citar, comentando, as barbaridades técnicas do livro, mas será suficiente terminar com esta extraordinária demonstração de como o livro está escrito. Primeiro uma frase (para a qual se dão duas referências bibliográficas) que diz uma coisa, coisa essa, aliás, que é uma deturpação do que dizem as fontes citadas (a ordem de selecção preferencial do fogo foi truncada, omitindo a posição dos carvalhos entre os matos e o pinheiro), mas uns parágrafos à frente os autores, sem qualquer referência bibliográfica de suporte, concluem o contrário, porque simplesmente a realidade não lhes interessa.

Nada disto é estranho se atendermos a que um dos autores não tem qualquer competência na matéria sobre que escreve, é um político que, na linha de Miguel Relvas e Feliciano Barreiras Duarte (entre outros), se arvora de títulos académicos que não possui, como ser investigador em alterações climáticas, quando é um estudante de doutoramento em ciências sociais.

Mais uma vez, apenas usei alguns exemplos que permitem, penso que com clareza, perceber que não estamos perante um livro técnico, mas um panfleto político, muito mau tecnicamente, em que os factos interessam muito pouco se não puderem ser alinhados com a propaganda.

Tendo verificado que os autores do livro têm tido ampla cobertura mediática, incluindo várias horas de televisão, sugiro simplesmente que usem os seus canais nos órgãos de comunicação social para propor um debate sério sobre o livro.

Por mim, estou disponível.

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