Epístola a Tiago e João: Os Maias, a língua e a literatura para os jovens

Não dar aos alunos a hipótese de ler a obra-prima de Eça de Queirós é impedir o acesso dos jovens a um monumento literário.

Dirijo-me directamente ao ministro da Educação e ao secretário de Estado desta tutela, João Costa, de quem fui aluno nos idos de noventa na Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Não conhecendo o ministro Tiago Rodrigues, conheço e tenho estima por João Costa, professor que procurou fazer-nos aderir a uma disciplina muitas vezes árida que era Sintaxe e Semântica. Na senda das lições de Maria Francisca Xavier, docente dessa mesma área, e com quem tive aulas, aprendi, lendo de Lindley Cintra e Celso Cunha a Nova Gramática do Português Contemporâneo, que estudar a língua implica um saber profundo da História e da Literatura. Creio que o magistério de Óscar Lopes se fazia ainda sentir em algumas abordagens a documentos histórico-linguísticos de que nos aproximávamos. Lembrando estes mestres da língua, outros docentes (Teresa Brocardo ou António Emiliano) não esqueciam um facto simples: o interesse e a importância da análise gramatical não dispensa, antes exige, uma sensibilidade para a linguagem literária e, por essa via, uma forte consciência da História. De resto, Ferdinand de Saussure, pai da linguística, não foi, ele mesmo, um atento inquiridor da linguagem poética? Não se dedicou ele ao estudo das potencialidades da linguagem literária, na fase final do seu trabalho? Vítor Aguiar e Silva, não nos (não vos) elucida quanto à prioridade que o texto literário deve assumir na formação integral dos alunos? As teses sobre o ensino do Português, tais quais Aguiar e Silva as apresenta, tê-las-ão lido quem assim defende estas Aprendizagens Essenciais?

Tudo isto vem a propósito das recentes alterações aos programas na disciplina de Português, terreno sempre fértil para as derivas mais absurdas e que, quase sempre (e quase sempre quando o PS orienta as políticas de educação), embatem na realidade simples dos factos. Um desses factos é a média nacional atingida este ano, a qual mostra e demonstra que a presença da literatura em situações de exame ou teste de avaliação não impede a compreensão dos temas e problemas que um enunciado complexo coloca aos alunos. Mas a questão central nesta infeliz tomada de decisão relativamente à não obrigatoriedade de ler-se Os Maias no 11.º ano (Cesário merecer-me-á uma reflexão outra, tão escandalosa que é a ausência de O Sentimento dum Ocidental nos currículos propostos com estas Aprendizagens Essenciais) tem outras implicações, a primeira das quais se prende com uma posição ideológica.

Não dar aos alunos a hipótese de ler a obra-prima de Eça de Queirós é impedir o acesso dos jovens a um monumento literário em que a língua portuguesa atinge um alto grau de expressão estética. Não é apenas a inovação (via Garrett) do discurso indirecto livre, não se trata apenas de ali podermos ler um modo de pensar e de agir das elites do nosso oitocentismo, de que Carlos e os seus são os representantes. Esta obra é relevante não só por nela a densidade psicológica das personagens e a estruturação das cenas ao longo da diegese nos convidarem à releitura das analepses e prolepses em função das quais a evolução dos tipos se dá. Para além desse desafio, há n’Os Maias outros aspectos de interesse. Há um universo de referências culturais sobre Lisboa (o Marrare, o Passeio Público, a Brasileira), Sintra (o pitoresco romântico que Byron celebrou, os hotéis que eram moda para quem aí descobria paixões várias), sobre a Literatura (a portuguesa, as alusões a nomes de poetas e romancistas franceses, ingleses e alemães), a Filosofia (Afonso lia o seu Guizot, o seu Voltaire, o seu Robespierre), a História e a Economia (em episódios ao longo do romance discute-se a banca, a dívida externa, Espanha, Portugal como protectorado inglês, Taine e Darwin, a Europa dos Impérios, Bismarck ou a situação da Coroa portuguesa, o rotativismo e a Regeneração, o fontismo...) essenciais para que o aluno que estuda Português compreenda que um texto literário o transporta, pela imaginação, para um mundo de possibilidades humanas, o qual, sendo pretérito, faz parte do nosso presente.

A história do incesto entre Carlos e Maria Eduarda, alegoricamente lida, dá-nos a chave para reflectirmos sobre a incestuosa história entre Portugal e as colónias (Maria, filha de Maria Monforte, “a negreira”), para além de colocar a Educação como tema e motivo que aponta para uma tese que nos diz, ainda hoje, respeito: “Carlos falhou na vida não por causa, mas apesar da educação”, como bem viu Jacinto do Prado Coelho. E, já agora, como não ver, no último capítulo do romance, o tema da descida aos infernos? Não interessará isto aos alunos? É que, apelando ao mito e ao símbolo, aquele regresso de Carlos, dez anos depois, a Lisboa, é um aviso para nós, portugueses do século XXI. Cristaliza-se aí tudo quanto não devemos ser: Carlos de nada se arrepende; repete mesmo que se envolveria de novo com a irmã e nem a sua fotografia final (o tipo de homem rico e que vive bem, mais gordo e entregue a banalidades) o impede de orgulhar-se de ser o onagrius baronius que Garrett, nas suas viagens, dava como caricatura do homem político português...

Ora, é disto, meus caros Tiago e João, que se trata: de insistir num erro (“a nossa fatalidade é a nossa história”, escreveu Antero, e Eça segue em Os Maias o raciocínio de Antero desenvolvido em Maio de 1871), provando à saciedade que falhamos não por causa, mas apesar da educação. É que não ler este livro, ou não ler Fernão Lopes ou certos passos da História Trágico-Marítima, bem como não ler essa epopeia crepuscular que é O Sentimento, de Cesário, é não só ideologicamente comprometedor, como é errado do ponto de vista pedagógico. Quando, anulando a literatura em nome de uma suposta cientificidade linguística, se apaga a memória e se dilui paulatinamente a História, o que temos é uma educação de massas no pior sentido. Um ensino público (ou privado) de qualidade faz-se com professores e alunos que sentem estar em pé de igualdade com outras realidades; faz-se com o reconhecimento de que a língua existe nos seus monumentos literários, sem cuja existência nenhum povo pode reconhecer-se na sua identidade. Um ensino para as massas deveria ser desígnio de um Governo socialista – mas este o que faz é mesmo educação massificada, traduzidas, essas Aprendizagens Essenciais, na ideia da negociação de conteúdos que conduzirão ao facilitismo e à superficialidade nas competências de leitura e escrita.

Na sátira de costumes que também é Os Maias diz-se, a dada altura, que a civilização nos fica curta nas mangas... Senhor ministro e senhor secretário de Estado, não vos parece que retirar esta obra de Eça, ou amputar a de Cesário, esquecer a de Fernão Lopes ou quaisquer outras do nosso cânone histórico-literário, é justamente impedir um bom ensino da língua e cercear a compreensão de métodos de análise científicos exigentes? Se para vós a ciência é sinónimo de aprendizagens essenciais e estas significam negociar para atingir o fácil, que ciência, que saber defendem? Só me lembro de Jacob Cohen... Há saber, diz ele...

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