Vai voltar a haver missa para celebrar Aljubarrota e uma peça de roupa

Baptizada com o nome da peça de roupa que o Mestre de Avis vestiu em Aljubarrota e deixou em Guimarães, a Missa do Pelote vai celebrar-se novamente nesta terça-feira, 633.º aniversário da batalha, após ter sido interrompida. Sem condições para sair hoje do Museu Alberto Sampaio, o pelote chegou a ser usado como símbolo de independência, no período filipino.

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HUGO DELGADO / PUBLICO
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Por mais de cinco séculos, o padrão gótico do Largo da Oliveira, habitualmente designado Padrão do Salado, reuniu os crentes para uma missa campal, que decorria anualmente, a 14 de Agosto. Junto a um dos arcos, repousava uma lança, encimada por uma peça acolchoada, de linho, de lã e de seda. Era o pelote que D. João I utilizou como protecção, por baixo da armadura, no decurso da Batalha de Aljubarrota, em 1385. Assegurada a independência portuguesa, com a vitória sobre um exército castelhano em superioridade numérica, o rei deslocou-se a Guimarães para cumprir uma promessa a Santa Maria. Na cidade, entregou à sua principal instituição católica, a Colegiada, vários bens, entre os quais o Tríptico da Natividade, altar portátil em prata dourada, a lança e o pelote (ou loudel), hoje exposto no Museu Alberto Sampaio. O artigo de vestuário tornou-se no símbolo maior da eucaristia comemorativa de Aljubarrota, que vai ser reavivada nesta terça-feira, às 19h00.

Após ter-se realizado pela última vez junto ao padrão, no final da década de 70 do século XX, segundo estimativa do prior da Colegiada da Nossa Senhora da Oliveira, José Maria Lima de Carvalho, a cerimónia vai regressar graças à iniciativa da Colegiada, mas também da Câmara Municipal de Guimarães e da Confraria Alma do Povo, Cultura e Turismo, associação criada em 2014 para “promover manifestações religiosas com expressão cultural”, indicou ao PÚBLICO o seu presidente, Florentino Cardoso. Apesar de, aos 62 anos, “não ter memória de qualquer missa” no seu tempo de vida, e da imagem mais recente da celebração que encontrou datar dos anos 30 ou 40, o dirigente associativo referiu-se à Missa do Pelote como “uma das tradições vimaranenses mais genuínas”, que merecia ser revitalizada.

A cerimónia, porém, vai decorrer na Igreja de Nossa Senhora da Oliveira, sem a presença da veste de D. João I, desviando-se do ritual tradicional. Florentino Cardoso explicou que a iniciativa de reavivar a missa “surgiu em cima da hora”, razão pela qual a Câmara não pôde garantir a celebração junto ao padrão, e que o pelote, dado o seu estado sensível, “não está em condições de ser transportado”. Convencido, no entanto, que o regresso da missa já neste ano pode sensibilizar a população para um “património imaterial de Guimarães que não é conhecido”, o dirigente revelou ainda que lhe foi prometida a retoma da tradição em 2019, com uma procissão pelo centro histórico a anteceder a missa e uma eventual representação do pelote, junto ao padrão.

A associação Alma do Povo, revelou ainda o presidente, pretende também implementar, a 14 de Agosto, um cortejo histórico com um trajecto semelhante ao que D. João I percorreu em Guimarães, para agradecer a vitória de Aljubarrota. “Esse cortejo iria contar momentos da história de Portugal, com destaque para aqueles em que a independência esteve em jogo”, explicou.

Pelote, símbolo de independência

A vereadora municipal com a pasta da cultura, Adelina Paula Pinto, assumiu ao PÚBLICO realçou que a Missa do Pelote solidifica a ligação da cidade a D. João I e a “uma nova fundação” do país, garantida em Aljubarrota, e assumiu que a autarquia vai tentar realizar um levantamento das tradições de Guimarães associadas à cerimónia, bem como dos sermões aí proferidos.

O sermão, aliás, distinguia a cerimónia das demais eucaristias católicas. “A eucaristia decorria como outra qualquer, mas tinha sempre um orador convidado para proferir um sermão patriótico e não apostólico”, adiantou Florentino Cardoso. De todos os sermões proferidos em centenas de missas, o mais conhecido é o de 1638, por Luís da Natividade, frade e guardião do Convento de São Francisco, em Guimarães. Depois de ter acompanhado D. João I, em 1385, o pelote foi então o protagonista de uma outra luta pela independência portuguesa, uma luta simbólica. “A celebração continuou a decorrer sob o domínio castelhano. O sermão de 1638 falava da independência de Portugal, algo que viria a ser restaurado dois anos mais tarde”, afirmou o historiador António Amaro das Neves.

Apesar do PÚBLICO não ter encontrado nenhuma versão integral do sermão, alguns excertos encontram-se no blogue de Amaro das Neves sobre Guimarães, Memórias de Araduca, e espelham uma crença numa mudança de rumo, apesar do aspecto do loudel servir de metáfora para o Portugal de então. “Vejo-vos, pelote, velho e roto: vejo-vos atravessado com a vossa própria lança (…). Só me resta para consolação ver-vos diante desta Virgem da Oliveira, que se uma vez vos livrou da morte, vos pode ainda ressuscitar a nova vida”, lê-se.

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