Como medicar-se com um ice cold toddy, filho da poncha e da cancha

Foi na Madeira que descobri que era impossível encontrar uma bebida mal feita ou mal servida. Todos os profissionais de hotelaria orgulhavam-se de servir bem e quase sempre a preços muito mais baixos do que em Lisboa.

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Paulo Pimenta

A primeira vez que provei whisky não sabia o que era. Sabia a fumo e a remédio. “O que é?”, perguntei à minha mãe. “Just drink it!”, respondeu com um sorriso, conselho que tenho seguido à letra toda a minha vida. Eu era uma criança constipada e aquele era o meu primeiro cocktail: um hot toddy, uma mistura de sumo de limão, mel e whisky, às vezes com uma aspirina dissolvida.

Fast forward até 1985 e estou numa venda de Câmara de Lobos. Estava à espera de uma taberna mas estou numa loja com um grande balcão. Não está mais ninguém. Quando pergunto se posso beber uma poncha, o senhor ri-se para mim. É um pedido estranho. Agora a poncha não podia estar mais na moda, mas em meados dos anos 1980 era raro ver-se um turista do continente fora do vasto circuito de hotéis e bares do Funchal.

Foi, aliás, na Madeira, porventura por ter mais um século de experiência turística do que Portugal continental, que descobri que era impossível encontrar uma bebida mal feita ou mal servida. Todos os profissionais de hotelaria estavam imbuídos do que só posso chamar brio — orgulhavam-se de servir bem e quase sempre a preços muito mais baixos do que em Lisboa.

Na venda, o senhor não era excepção. Que poncha é que eu queria? A poncha de pescador, feita com aguardente de cana da Madeira. Enquanto fazia a poncha — leva tempo a dissolver o mel —, o senhor começou a ganhar balanço e a explicar-me que a verdadeira poncha leva água quente e é servida quente para aquecer a tripa nas madrugadas frescas. Orgulhava-se muito de usar só “mel de abelhas”, mostrando-me o frasco e tudo. Quando provei a poncha, a primeira coisa que me ocorreu foi a lembrança daquele hot toddy da minha infância. Este era um room temperature toddy mas a semelhança era evidente.

É do mel de abelhas. Nos livros de cocktails é raro aconselhar-se trabalhar com mel, por causa do tempo que leva a dissolver. É por isso que se sugere fazer-se um xarope de mel. Pesa-se o mel e acrescenta-se o mesmo peso de água acabada de ferver. Pode fazer-se com metade do peso de água para ficar com um xarope de mel duas vezes mais concentrado. Mas não fica tão bem como o mel, nem de longe. Não sei porquê. Se calhar as bebidas beneficiam de serem mexidas durante tanto tempo.
“Tanto tempo” é para aí um minuto e meio.

As receitas que conheço aconselham a usar mel muito líquido (runny honey) mas, mais uma vez, isso é para poupar tempo e poder atender mais clientes e vender mais bebidas. O mel de que eu mais gosto cristalizou e não podia ser mais espesso. Claro que se dissolveu maravilhosamente. Deve-se sempre usar o mel mais saboroso que se tem. Há por aí mel muito líquido, muito barato e muito suspeito, adulterado com açúcar: compre o mel a um apicultor perto de si.

Foi nos anos 1980 que em Havana uma equipa de estudiosos redescobriu a canchánchara, uma bebida quente que os soldados cubanos bebiam de madrugada durante a Guerra dos Dez Anos contra os espanhóis (1868-1878). É o antepassado dos daiquiris e de todos os sours porque mistura aguardente de cana, lima e mel. Sim, é uma poncha. Sim, é um hot toddy. Claro que quando está calor a versão fria é mais deliciosa. A versão de que mais gosto é a canchánchara proposta pela Havana Club para o seu rum de sete anos. Este ano consegui comprar dois estojos desta marca que incluíam um copo especial (pesado e bulboso) para esta bebida. O nome da bebida foi sabiamente reduzido para cancha, sem acento.

Estou a pesar os ingredientes porque permite maior precisão e melhor consistência (o número de gramas é igual ao número de mililitros). Eis os ingredientes:
50 gramas de rum. Fica bem com o rum em questão mas também com outro rum envelhecido pelo menos três anos. Se o rum não for bom sozinho, a
cancha também não fica boa.
10 gramas de mel (ou xarope de mel, aguamiel)
5 gramas de sumo de lima
1 cunha de lima
4 pedras de gelo

Há uma versão em que a bebida é esticada com água com gás mas eu gosto mais da versão original. Como o copo é robusto, mais parecendo um frasco, gosto de cortar uma lima inteira em quatro e, usando um pilão de caipirinha, amasso a lima (sobretudo a casca) no mel. Também gosto de aumentar a quantidade de sumo de lima (para 10 gramas) e baixar o mel (para 7 gramas). Mas isso são afinações. Embora as
afinações sejam tudo, obviamente.

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