O caso da empresa que faliu e continuou a receber subsídios

A Celticerâmica recebeu ilegalmente tarifas subsidiadas de cogeração, até que a DGEG lhe revogou a licença de produção. A ERSE diz que os consumidores foram penalizados e cortou 1,4 milhões aos proveitos da EDP, que foi para tribunal.

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Processo de insolvência ainda está a correr nos tribunais locais. SERGIO AZENHA / PUBLICO

Nascido da má gestão, da desonestidade e de falhas de fiscalização do Estado, há mais um caso que opõe a EDP e a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) a fazer caminho em tribunal.

Em causa estão 1,449 milhões de euros que a ERSE abateu aos proveitos que o grupo liderado por António Mexia esperava retirar das tarifas da luz deste ano, por entender que os consumidores já suportaram um encargo indevido.

A EDP Serviço Universal (EDP SU) está a tentar anular a decisão da ERSE através de uma acção que entrou em Março no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, mas esta história está longe de ter regulador e regulado como únicos protagonistas. Nela destacam-se a Celticerâmica, uma empresa falida e em processo de liquidação, que durante pelo menos um ano recebeu tarifas subsidiadas por electricidade produzida ilegalmente, e a Direcção-geral de Energia e Geologia (DGEG), responsável pela sua fiscalização.

“Somente em Setembro de 2014 a DGEG detectou que a Celticerâmica se encontrava em situação irregular, apesar de esta situação já se verificar desde finais de 2013 e inícios de 2014”, relata a EDP no processo que o PÚBLICO consultou.

Além de se dedicar ao fabrico e comércio de telhas, a empresa de Vale do Grou (Águeda), produzia electricidade com licenças de cogeração, uma das formas de geração que beneficia de tarifas subsidiadas (a chamada produção em regime especial, ou PRE) e que combina num mesmo processo produção de energia eléctrica e energia térmica (esta aproveitada para o processo industrial).

A EDP SU tem a obrigação legal de comprar toda a PRE, que depois coloca em mercado, sendo compensada através das facturas da luz, em moldes definidos pela ERSE, pela diferença entre o valor pago aos produtores de renováveis e cogeração e o valor da revenda (porque as tarifas subsidiadas são superiores ao preço de mercado). Estes montantes são sujeitos a ajustamentos tendo em conta as previsões de custos incluídas nas tarifas e os custos reais incorridos pela empresa.

Durante anos, a EDP comprou a produção à Celticerâmica, mas no final de Outubro de 2014 a DGEG remeteu-lhe a cópia de uma carta enviada a esta cogeradora revelando a intenção de revogar-lhe as duas licenças de produção. Isto por se ter detectado, numa fiscalização às instalações, em Setembro, “a ausência de processo produtivo/industrial”. Não só o processo produtivo “havia sido desmantelado”, como se constatou que “o centro electroprodutor de cogeração se encontrava a funcionar sem aproveitamento térmico”, o que configurava “uma ilegalidade”, visto que o aproveitamento térmico para o processo fabril é condição para que a electricidade seja considerada de cogeração.

“Ou seja, a DGEG teve conhecimento que desde pelo menos o final do 4º trimestre de 2013, a Celticerâmica havia cessado a sua actividade, tendo mantido em funcionamento as instalações sem aproveitamento térmico, limitando-se a produzir energia eléctrica”, nota a EDP.

Porém, enquanto a Celticerâmica foi titular de licenças válidas, a EDP SU “continuou a cumprir a sua obrigação legal de pagar a energia eléctrica, não podendo agir de forma diferente”, refere a empresa. A DGEG revogou as licenças em Dezembro e informou a EDP em Fevereiro de 2015. O PÚBLICO questionou a secretaria de Estado da Energia, que tutela a DGEG, mas não foi possível obter esclarecimentos sobre este tema.

No início de 2015, a EDP cessou a compra da electricidade, apesar de a Celticerâmica ainda ter emitido facturas até Abril (que foram devolvidas sem pagamento). Segundo uma base de dados empresarial consultada pelo PÚBLICO, a Celticerâmica é maioritariamente detida por Carlos Alberto dos Santos Almeida, que tem 69% do capital e figura como director de marketing e comercial. António Maria Lopes Martins, que tem 10% da empresa, surge como director de operações. Gonçalo Ramalho de Melo aparece como presidente e Paulo Gonçalves Ferreira e Paulo Domingos Rocha como administradores.

Cartas sem resposta

De nada serviu que, em Agosto de 2015, a DGEG tenha notificado a Celticerâmica para devolver os 2,167 milhões de euros (valor com IVA) recebidos entre Janeiro e Dezembro de 2014.

Perante a falta de resposta, a DGEG comunicou à EDP que procedesse “à cobrança dos montantes”. A EDP fê-lo em Dezembro, e voltou a insistir em Janeiro de 2016, mas sem êxito: a Celticerâmica nunca respondeu às cartas. “Não havendo disposição legal e regulamentar específica para ressarcimento das quantias despendidas apesar de pedidas à Celticerâmica, nada mais resta do que pedir aquilo que foi recebido indevidamente”, reconheceria entretanto a direcção-geral.

A EDP conta que em Dezembro de 2016 escreveu à ERSE a relatar o caso, para que a entidade “participasse no processo de decisão e estratégia” a adoptar. E, com a certeza de ter agido sempre “em prol dos interesses gerais subjacentes ao Sistema Eléctrico Nacional [SEN]” e de que a situação verificada não era sua responsabilidade, por não ter “qualquer competência ou possibilidade de licenciamento ou fiscalização da actividade dos cogeradores, a qual está cometida à DGEG”, a EDP recordava que “tinha o dever jurídico” de comprar a electricidade à Celticerâmica até que recebesse “instruções diversas da DGEG”.

A empresa dava ainda nota da sua disponibilidade para iniciar uma acção contra a Celticerâmica, desde que com a “confirmação por parte da ERSE” de que haveria “reconhecimento integral dos respectivos custos e de todos os seus efeitos nos proveitos permitidos”.

Porém, na resposta enviada em Maio, a entidade liderada por Cristina Portugal respondeu que a EDP teria “todo o interesse” e legitimidade para agir judicialmente contra a Celticerâmica, mas deixou claro que o valor de 1,449 milhões seria descontado aos proveitos permitidos da actividade de compra e venda de energia eléctrica à PRE em 2018.

Isto porque, no entender da ERSE, “o diferencial de custo com a aquisição de energia eléctrica à Celticerâmica em 2014 face ao valor estimado de venda” desta energia nesse ano “foi indevidamente suportado pelos consumidores”.

Na volta do correio, a de 20 Junho de 2017, a EDP “manifestou logo o seu desacordo” perante a intenção da ERSE, dizendo não aceitar suportar eventuais prejuízos causados ao SEN pela Celticerâmica.

Na acção, a EDP SU acusa precisamente a ERSE de estar a transferir-lhe, “sem qualquer base legal”, os prejuízos do SEN, pondo em causa o equilíbrio económico-financeiro de uma actividade para a qual está licenciada. Diz a empresa que a actuação do regulador é ilegal porque a lei não prevê ajustamentos às tarifas nos casos de fraude dos produtores em regime especial cogeradores devidamente licenciados.

Instalações vazias

A EDP constituiu-se como credora no processo de insolvência da Celticerâmica (iniciado em Março de 2017), embora garanta que agiu “em nome do SEN”, e na tentativa de “salvaguardar os interesses dos consumidores”, “nunca invocando um interesse próprio”.

Se no relatório do administrador de insolvência (anexado ao processo) este defende que a insolvência da Celticerâmica deve “ser qualificada como culposa”, também a EDP pede que sejam “afectados por essa qualificação culposa” os administradores que desde Março de 2014 exerceram funções na empresa e “diligenciaram” para que desaparecessem todos os bens que poderiam ser usados para pagar dívidas.

Contactado pelo PÚBLICO, o administrador da insolvência da Celticerâmica, Orlando Apoliano Carvalho, adiantou que o processo, ainda em fase de liquidação, deverá estar encerrado até ao final do ano, mas confirmou que não há património para ressarcir os credores. Além disso, até à data “não foi possível encontrar os gerentes da empresa”, que poderiam vir a ser condenados solidariamente a indemnizar os credores.

No seu relatório, Orlando Apoliano Carvalho refere que todas as cartas dirigidas à Celticerâmica ficaram sem resposta, e que a visita às instalações comprovou que estas estavam “vazias e vandalizadas”, sem matérias-primas ou material já acabado, nem quaisquer veículos ou equipamentos que pudessem ser usados para pagamentos. O relatório refere ainda que o fisco reclama à Celticerâmica créditos (alguns desde 2014) relativos a IVA, IRS, IRC e IUC de várias viaturas, bem como taxas de portagem dessas viaturas. Também a Segurança Social reclama quotizações relativas a Junho de 2016 e Fevereiro de 2017, além de haver vários fornecedores com facturas por pagar, como a Iberdrola e a Meo, entre outros.

Dois anos sem avisar

Na contestação às acusações da EDP (enviada ao tribunal em Abril), a reguladora da energia nota que a sua proposta tarifária para 2018 até teve o voto favorável da EDP em sede de conselho tarifário da ERSE. Além disso, frisa que “a aquisição da PRE [à Celticerâmica em 2014] foi efectuada num reconhecido quadro de desconformidade” legal e que isso “não é compatível com o reconhecimento de sobrecustos nas tarifas de electricidade”.

A entidade também destaca que não está em causa o equilíbrio económico-financeiro da EDP SU, cujos activos são remunerados através das tarifas “em termos que excedem a mera recepção dos custos suportados” (a taxa de remuneração de 2018 é de 5,75%).

Salientando que a EDP “conheceu os factos quase dois anos antes de informar a ERSE”, a entidade lembra que a empresa ainda tem pendente uma acção contra a Celicerâmica e que por isso não pode, em simultâneo, procurar compensações por via dos consumidores. Embora a EDP considere que as duas acções não são incompatíveis, a ERSE sustenta que a questão do valor em dívida “não se coloca de momento”.

Só na circunstância de vir a ser confirmada a insuficiência da massa insolvente poderá ser efectuada uma análise ao equilíbrio económico-financeiro da EDP SU, nota a reguladora, rejeitando, no entanto, que se possa concluir que “no momento presente” (em que vigoram os ajustamentos aos proveitos de 2018) esse equilíbrio esteja a ser posto em causa.

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