Da legenda de uma planta se farão casas no antigo Museu da Rádio

A legenda de uma planta desenhada há mais de 20 anos tornou legal o que era ilegal e permitirá que se construa num logradouro.

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Miguel Manso
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É proibido mas pode-se fazer. Desta forma se resume o projecto aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa para um quarteirão da Lapa, que envolve a construção de três edifícios de habitação nas traseiras do antigo Museu da Rádio, que será reabilitado para também ter apartamentos.

É proibido porque todos os regulamentos municipais de Urbanismo impedem genericamente a construção em logradouros. E é num logradouro, onde hoje existem umas barracas ilegais, que o promotor quer erguer os novos prédios. Mas pode-se fazer porque existe uma planta da Lapa e da Madragoa, elaborada pela câmara há 22 anos, que para aquele local tem a legenda “Demolição com construção”.

Foi com base nesta legenda que a autarquia aprovou o Radio Palace, um empreendimento da empresa Vanguard Eagle com 16 apartamentos, três caves para parque de estacionamento e um jardim interior. A legenda da planta de um plano de urbanização sobrepõe-se a uma regra escrita nesse mesmo plano e ao que dispõe o Plano Director Municipal? A câmara considerou que sim e já dois tribunais lhe deram razão, depois de alguns vizinhos terem tentado impedir judicialmente a concretização do projecto. Agora, o Fórum Cidanania Lisboa lançou uma petição para que o executivo reverta a decisão e impeça construções no logradouro.

A ideia de transformar o antigo Museu da Rádio em habitação não é recente. O edifício já deixou de albergar o museu há mais de dez anos e foi vendido pela RTP a privados, estando desde então devoluto, embora vários projectos se tenham sucedido.

Na origem do Radio Palace esteve um pedido de informação prévia (PIP), apresentado à câmara pelo fundo Banif Reabilitação Urbana, à data proprietário do prédio, e aprovado em Maio de 2016 numa reunião da autarquia. Nesse momento já a Vanguard Eagle andava interessada no lote, que veio a adquirir pouco depois. “Se o PIP não tivesse sido aprovado não tínhamos comprado o imóvel”, diz José Botelho, director-geral da Vanguard Eagle, empresa do milionário francês Claude Berda que tem inúmeros projectos em Lisboa e noutros locais do país.

O PIP foi aprovado com base no Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Madragoa (PUNHM), de 1997, que tem a tal planta que prevê, para aquele local, “demolição com construção” – isto apesar de as barracas no logradouro sempre terem sido ilegais. Ao apreciarem o PIP, os serviços municipais de Urbanismo desvalorizaram esse ponto: “Em anteriores processos foi levantada a questão da legalidade das construções existentes no logradouro, a qual nos parece sem relevância em face das medidas regulamentares do PUNHM, que prevê a demolição das mesmas com novas construções.”

De facto, num PIP que fora apresentado em 2008 por outra empresa, os serviços consideraram “indispensável” saber se as barracas eram ou não legais antes de analisarem o projecto. Concluiu-se que as ocupações do logradouro eram ilícitas. Mas, num despacho do director do então Departamento de Reabilitação, sugeriu-se a avaliação do PIP à luz da dita planta do PUNHM, o que tornava “ultrapassada” a questão da ilegalidade das barracas.

A 17 de Março de 2009, um técnico do Urbanismo elaborou um documento no qual deixava “à consideração superior a decisão sobre o presente processo”. Uma semana depois, ele era aprovado em reunião de câmara. Nesse mesmo dia, uma carta seguia dos Paços do Concelho para a empresa promotora do empreendimento, a elogiar-lhe o “espírito de iniciativa demonstrado” e “desejando o maior sucesso”, pois a “dinâmica empreendedora prestigia a urbe e contribui para o engrandecimento da cidade de Lisboa”. A missiva era assinada pelo então presidente da câmara, António Costa.

Esse PIP aprovado em 2009 não chegou a ter sequência. Mas a interpretação de que bastava a legenda da planta do PUNHM para aprovar projectos para o logradouro manteve-se e originou a aprovação do PIP em 2016. O plano de urbanização, bem como o Plano Director Municipal, proibiam as construções em logradouros, mas também previam excepções – e elas foram invocadas na análise do processo.

Menos de dois meses depois da aprovação do PIP, o PUNHM foi substituído pelo PPRUM, o Plano de Pormenor de Reabilitação Urbana da Madragoa, cuja planta síntese era diferente da planta que justificara a aprovação anterior. Por isso, quando a Vanguard Eagle, já dona do lote, pediu o licenciamento efectivo do projecto, a câmara começou por rejeitá-lo, até porque tinha várias alterações face ao PIP.

Uns meses mais tarde, no entanto, já em 2017, os serviços validaram um projecto que era um combinado entre o PIP e alterações de acordo com PPRUM. Assim, por exemplo, um dos edifícios novos cresceu em altura e em largura e o número de lugares de estacionamento em cave subiu de 26 para 41. O processo foi subindo na hierarquia interna da autarquia sem que os diferentes níveis emitissem parecer, que foi sempre remetido “à consideração superior”. Por fim, ele chegou às mãos do vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, que o aprovou por despacho, contrariamente ao proposto pelas chefias abaixo de si, que advogavam que o processo devia ser analisado em reunião de câmara.

Geologia preocupa vizinhança

Confrontado com este assunto numa reunião recente por alguns moradores da zona, o vereador Manuel Salgado reagiu com dureza à acusação de que o projecto era ilegal. “O projecto não é ilegal. O projecto é legal, já o vi e revi de uma ponta à outra e cumpre integralmente toda a legislação aplicável”, disse. “O projecto não foi aprovado às escondidas. Foi aprovado nos termos da delegação de competências da câmara no senhor presidente e do senhor presidente em mim. E fui eu que o aprovei, depois de o ver conscienciosamente”, acrescentou.

“Este processo foi amplamente escrutinado. Passou por pelo menos três arquitectos na câmara, mais na Direcção-Geral do Património Cultural”, diz, por sua vez, José Botelho. O director-geral da Vanguard Eagle sustenta que “a câmara e o tribunal já vieram dizer que o projecto é legal” e que, se os vizinhos não concordavam com a legenda do PUNHM, deviam tê-lo dito em 1996, quando ele foi discutido. “Não há registo, nessa altura, de pronúncias contra o plano”, refere José Botelho.

As críticas e preocupações da vizinhança prendem-se com a ocupação do logradouro, mas sobretudo com a escavação de três caves numa encosta onde há um conhecido historial de problemas causados pela instabilidade dos terrenos. “Obviamente que fizemos um estudo geológico de toda esta zona e ele não mostrou a necessidade de usar um método construtivo fora do normal”, afirma José Botelho, apresentando um parecer técnico de uma empresa, a AfaConsult, segundo o qual “a geologia do local não é condicionante nem inviabiliza trabalhos de escavação e contenção de terras para execução de caves”.

“Alguém quer fazer um projecto sabendo que aquilo vai cair? Só se for doido”, argumenta José Botelho, assegurando que a empresa apresentou uma proposta de escavação segura. “Eu quero é que os edifícios se façam sem problemas.”

Também Manuel Salgado garantiu, na mesma reunião em que os moradores intervieram, que a autarquia olharia com atenção para este assunto. “Os termos de responsabilidade dos técnicos autores dos projectos das especialidades, de acordo com a legislação existente, são suficientes para a execução das obras. Porém, no caso concreto das escavações e contenções periféricas, dada a delicadeza que pode ter e o efeito que pode ter nos prédios vizinhos, a câmara municipal tem um serviço que aprecia todos os projectos de escavação em detalhe e é o que está a fazer neste caso concreto”, disse. Aguardam-se novidades desse serviço.

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