O etéreo, o terreno e o fantástico no final da temporada Gulbenkian

Três compositores da mesma geração exibiram as suas fortes personalidades criativas num concerto bem demonstrativo da vitalidade e do poder de comunicação da criação musical do nosso tempo.

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Vasco Mendonça Nuno Ferreira Santos

O concerto final da temporada Gulbenkian deu a conhecer obras de três compositores da mesma geração (todos nascidos em 1977), oriundos de diferentes países e detentores de fortes personalidades criativas: Aeriality, da islandesa Anna Thorvaldsdottir; Anthology of Fantastic Zoology, do norte-americano Mason Bates; e Step Right Up, para piano e orquestra, do português Vasco Mendonça, composição em estreia mundial encomendada no âmbito do programa SP-LX, a parceria estabelecida entre a Gulbenkian e a Orquestra Sinfónica do Estado de São Paulo para promover a nova música dos dois países. O resultado é bem demonstrativo da vitalidade da criação musical do nosso tempo e do forte poder de comunicação que a música contemporânea pode exercer junto do público, ao contrário do que às vezes se pensa. Para o sucesso contribuiram também a direcção do jovem maestro Benjamin Shwartz e a Orquestra Gulbenkian, bem como, na peça de Vasco Mendonça, um solista de excepção: o pianista Roger Muraro.

Estímulos extra-musicais como a natureza, referências visuais e literárias (nomeadamente o Manual de Zoologia Fantástica, de Jorge Luis Borges, no caso de Bates), cenas do quotidiano e mundos imaginários, etéreos ou terrenos serviram de de fermento para a criatividade destes compositores. Aeriality, de Anna Thorvaldsdottir, constrói-se a partir de texturas sonoras flutuantes que se sobrepõem em camadas e vão sofrendo metamorfoses. O ouvinte é confrontado não com a individualidade tímbrica de instrumentos ou naipes específicos, mas com massas sonoras que fluem entre diversos grupos instrumentais criando campos harmónicos de denso cromatismo (incluindo o recurso a quartos de tom), e que são entremeadas por momentos mais líricos. A subtileza com que a compositora manipula a orquestra ao nível da cor e da luminosidade é demonstrativa de um sólido métier posto ao serviço de uma obra fascinante.

Também em Step Right Up Vasco Mendonça trata a orquestra como um instrumento global, mas de um modo radicalmente diferente. Enquanto na peça de Thorvaldsdottir se oscila entre o intangível e o terreno em vastas paisagens sonoras, remetendo para o jogo de palavras do título (“aerial” e “reality”), o compositor português opta pela centralidade dos elementos rítmicos e percussivos, levados por vezes a um exagero obsessivo, numa intrincada teia de relações que exige grande coordenação rítmica e dinâmica: uma prova de fogo que o experiente Roger Muraro e a Orquestra Gulbenkian, sob a direcção atenta de Shwartz, superaram, ainda que alguns detalhes possam vir a ser polidos com vista à futura gravação para a Naxos. Em especial no primeiro e no último andamentos, já que o segundo é mais introspectivo e explora atmosferas mais delicadas e sombrias, atinge-se uma incisiva materialidade do som, percorrida por uma energia visceral, que encontra eco no título e na evocação de rituais africanos que também serviu de referência ao compositor. Conforme Vasco Mendonça referiu na entrevista ao PÚBLICO publicada a 15 de Junho, Step Right Up é uma expressão que significa “juntem-se todos” e que “tem a ver com música de rua”. Em grande parte da obra impera a dimensão do piano como instrumento de percussão, por vezes através de gestos musicais breves que exigem sincronização milimétrica com as forças orquestrais. Apesar deste tratamento anti-romântico do piano e das suas relações com a orquestra, o virtuosismo não está ausente, pelo que Roger Muraro pôde mostrar as suas multifacetadas qualidades, defendendo com brio uma obra que aspira a um lugar de destaque na produção de Vasco Mendonça, cujo percurso tem atingido crescente visibilidade internacional.

Depois do intervalo, Benjamin Shwartz e a Orquestra Gulbenkian deram vida de forma sugestiva a Anthology of Fantastic Zoology, de Mason Bates, também conhecido pela sua carreira como DJ. Das três obras em programa é a que apresenta uma linguagem mais convencional, mas esta é usada com habilidade na construção de um universo musical lúdico quase pictórico. Descrita pelo compositor como “um compêndio de criaturas míticas” (na linha da obra de Borges) e como “uma espécie de Carnaval dos Animais psicadélico”, a peça procura fazer o retrato sonoro de ninfas, duendes, sereias, do grifo ou do delirante A Bao A Qu, que serpenteia em torno de uma torre, entre outras criaturas fantásticas, e teatralizar as suas acções, atingindo um ponto alto no momento em que “um animal do tamanho de uma ilha” devora os restantes seres. A exploração do espaço (com recurso a violinos fora do palco mas também a diálogos e combinações tímbricas associadas a cada uma das personagens) e um tratamento quase cinematográfico dos vários elementos sonoros permitem facilmente ao ouvinte imaginar um exuberante filme de animação.

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