Uma nova aventura de Vasco Mendonça para piano e orquestra

O concerto desta sexta-feira à noite na Gulbenkian, com música da actualidade, inclui a estreia de um concerto para piano do compositor Vasco Mendonça, uma obra que será gravada e editada em CD brevemente. “Aprocheguem-se”, ou melhor, Step right up!

Cadeira, sentado
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Vasco Mendonça Nuno Ferreira Santos
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Nuno Ferreira Santos
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Nuno Ferreira Santos

Step right up pode traduzir-se por “juntem-se todos”, ou “aproximem-se, venham ver”, como se chamasse a gente num espectáculo de feira. Um título convidativo à escuta da nova peça de Vasco Mendonça que esta sexta-feira se estreia no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, às 21h.

Vasco Mendonça é um compositor português que tem tido uma carreira fulgurante. A Fundação Gulbenkian apresenta-o como “um compositor que é já uma voz essencial na música contemporânea portuguesa e europeia”. Vasco Mendonça estudou com os compositores Klaas de Vries e George Benjamin (para muitos conhecido por ser o autor da ópera Written on Skin) e a sua música tem sido tocada em várias salas europeias. Recentemente, teve a felicidade de ter ganho o Rolex Mentor and Protegé Arts Initiative (com a compositora finlandesa Kaija Saariaho), um programa filantrópico de apoio a jovens artistas, acedendo a uma bolsa que lhe dá a oportunidade de desenvolver novos projectos e ver a sua música interpretada em diversas partes do mundo.

Entre esses projectos está agora a gravação de um disco monográfico com obras orquestrais do compositor. A Gulbenkian e o seu director do serviço de música, Risto Nieminen, apoiou e acolheu a ideia, programando este concerto para piano e esta gravação e incluindo-o num concerto maior dedicado a música da actualidade – um dos espectáculos que resultam de uma parceria da fundação com a Orquestra Sinfónica de São Paulo dedicados a música contemporânea do Brasil e de Portugal. “Quando falei com Risto, disse-lhe logo que achava graça fazer um concerto para piano e ele achou bem”, conta-nos Vasco Mendonça no foyer da Fundação Gulbenkian, na sequência de um vivo ensaio do seu novo concerto. “É o primeiro concerto que escrevo”, diz Vasco Mendonça. Logo se pôs a questão de quem seria o solista de concerto para piano: “Tinha visto o Roger Muraro a tocar o concerto de Ravel e lembrei-me logo dele. Para além do mais, ele conheceu o Messiaen e toca a música dele frequentemente. Eu estudei com um aluno do Messiaen [George Benjamin] – há aqui uma genealogia interessante também...” Tudo bateu certo, e o pianista Muraro aceitou o desafio.

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Vasco Mendonça Nuno Ferreira Santos

Um relógio por dentro

“Eu sou péssimo pianista, mas gosto profundamente do piano”, diz Vasco Mendonça, que nos fala depois das suas ideias estéticas para este Step right up: “O género concertante é um enigma – são duas entidades que estão ou não estão. Para mim a orquestra e o piano são mecanismos de precisão, e o piano é em si mesmo uma máquina de carácter orquestral, pelo registo, o âmbito, o volume sonoro, a agilidade dinâmica, tudo. Por outro lado, a orquestra é um caleidoscópio e abre um mar de possibilidades. Um é uma extensão do outro, isso alimentou dramaticamente a forma da obra: expansão, precisão e sincronismo.”

Vasco Mendonça parece entusiasmado com este seu projecto e isso vê-se no ensaio, em que, com a partitura na mão, vai dando esclarecimentos ou respondendo a dúvidas do maestro e da orquestra: “Há sempre pequenos ajustes, para clarificar as coisas. É preciso moldar a música como um oleiro, o material musical.” Para ele, tudo tem de se articular na perfeição, como num relógio: “As dificuldades rítmicas e dinâmicas têm que ver com a precisão — se conseguimos encaixar tudo, vemos um relógio por dentro. Creio que há poesia nisso.”

Um concerto como música de rua

Para Vasco Mendonça escrever um concerto para piano não tem de ser carregar às costas toda a história do piano e da forma concerto. “Estou menos ligado ao piano romântico”, diz o compositor. “A história do instrumento e da forma concerto é tão rica que podia ser paralisante. Tive de pensar que piano quero, como articular as ideias que me interessam para a minha música. Queria ser sincero, pessoal e consistente sem me preocupar muito com a ideia de concerto.” Tudo para chegar à “oposição dramática entre o piano e o grupo, em que o piano é como um mestre de cerimónias, aquela forma preta no meio da orquestra”. Nas notas de programa ao concerto, o compositor explica que os três andamentos procuram “um equilíbrio diferente entre o piano e a orquestra, uma relação dramática instável entre quase iguais”. Quase...

Vasco Mendonça foi buscar o título Step right up a uma expressão típica no circo de província, sobretudo nos EUA. “Significa ‘juntem-se todos’, é uma interjeição que achei que era bonita. Tem que ver com música de rua, o que se pode sentir sobretudo no primeiro e no terceiro andamentos, em que há uma ‘exterioridaded da música. E há também a ideia de as pessoas se juntarem para partilhar um momento. Vejo a música e as artes como formas de comunicação e empatia, uma forma de comunicar com outro. Não quer dizer que vão gostar, mas estamos disponíveis para mostrar ao outro. Até socialmente essa disponibilidade para o outro é necessária, é um acto de partilha, generoso.”

A caminho de uma edição em disco

Este Step right up será gravado para edição futura em CD monográfico. “Fui atrasando fazer um disco em meu nome, talvez por um certo pudor em tomar essa decisão”, confessa Vasco Mendonça. “Mas há uma razão prática: fazer um disco orquestral é uma tarefa homérica por causa dos custos, por isso estou muito agradecido à Gulbenkian, que pôs a orquestra e o auditório à disposição uma semana. E tive a sorte de ter o apoio e a disponibilidade da Rolex. Então juntei as duas coisas, a estreia do concerto e o disco, e posso fazê-lo nas melhores condições, com um maestro excelente, uma orquestra excelente, um solista excelente. Com meios técnicos para fazer um projecto sólido. A verdade é que às vezes excelentes projectos falham por falta de tempo e dimensão. Sinto-me sortudo por ter esta oportunidade”, diz o compositor.

“Senti necessidade agora de fixar este momento. O disco tem peças com coisas em comum e no seu conjunto são uma boa demonstração do que é o meu trabalho orquestral”, diz. É também uma forma de arrumar uma fase num percurso em aberto? Ele diz-nos não ver bem a coisa assim, mas assume que sente a necessidade de enveredar por outros caminhos: “Interessa-me, por exemplo, a performance. Tenho, por exemplo, um projecto com o Drumming, que tem mais que ver com performance. Acho que é saudável não estar sempre nos mesmos espaços com o mesmo tipo de pessoas.” E insiste na procura também de contacto com novos ouvintes: “Há muitas pessoas que podem descobrir o deslumbramento e o prazer da música contemporânea. Associá-la ao repertório canónico é mais artificial. Aquela vibração tem de ser incentivada, é preciso falar com as pessoas, manter a identidade, mas mostrar disponibilidade para interagir com elas. Como um quadro do Rothko – é esmagador, não sabes onde vai tocar, mas toca.” Na designação de “música contemporânea”, ele prefere pôr o acento na palavra “contemporâneo”: “No sentido de aventura, de procura de outras coisas, claro, de estarmos neste mundo.”

No concerto desta sexta-feira à noite, Vasco Mendonça estará acompanhado por obras bem diferentes, uma da islandesa Anna Thorvaldsdottir (Aeriality) e outra do compositor e DJ Mason Bates, com a peça Anthology of Fantastic Zoology (descrita como “um Carnaval dos Animais psicadélico”), que sugeriu o título para o espectáculo no seu conjunto, Zoologia Fantástica, que será dirigido pelo maestro Benjamin Shwartz.

Música actual para descobrir esta sexta-feira, na Gulbenkian, neste mundo. Com a ajuda de um piano preto no mar da orquestra.

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