Os “Donalds e as Melanias” deste mundo confrontam-se na Casa da Música

The Gender Agenda, de Philip Venables, cruza música e teatro para debater o sexismo, a misoginia e o slut-shaming. O objectivo é diluir a barreira entre palco e plateia, confiando na forte interacção entre as partes.

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Não é bem um concerto, mas também não é bem uma peça de teatro. Esta terça-feira, o palco da Sala Suggia da Casa da Música, no Porto, transforma-se numa espécie de concurso de televisão onde o público é convidado a participar em jogos que acontecem em tempo real e que abordam questões fracturantes da actualidade, como o sexismo, a misoginia ou o slut-shaming. The Gender Agenda, o espectáculo de Philip Venables que agora se estreia em Portugal, parte de um formato descontraído e familiar, fazendo suceder vários desafios mediados por um apresentador, intercalados por separadores com visual e banda-sonora muito característicos. “Uma vez que o foco principal é a participação do público, esta estrutura pareceu-me a mais adequada, porque toda a gente sabe do que se trata”, explica o compositor britânico ao PÚBLICO.

A peça foi criada no âmbito projecto europeu Connect, da Art Mentor Foundation Lucern, que propõe a criação de obras musicais para interpretação conjunta de músicos e público, de igual para igual, numa tentativa de esbater a barreira entre uns e outros. Philip Venables serviu-se do cruzamento entre música e texto que é habitual na sua obra – já recorreu a excertos da poesia de Walt Whitman e Sylvia Plath, a recortes de jornais e a entrevistas – para criar um concerto que é também uma peça de teatro e um espectáculo multimédia. “O texto permite explorar temas políticos e questões sociais, o que é mais difícil de fazer apenas com a música”, admite, acrescentando que a camada teatral que se lhe sobrepõe "dá à audiência outro tipo de experiência”.

Após a estreia em Londres, a 12 de Abril, The Gender Agenda materializa-se agora num encontro entre o público português, o Remix Ensemble Casa da Música, o maestro Pedro Neves, o coro de uma turma do 11.º ano do curso de Teatro do Balleteatro Escola Profissional, o Digitópia Collective – responsável pela componente electrónica – e, claro, a apresentadora do concurso televisivo, Raquel Couto. A maestrina, que não tinha experiência anterior em representação, é a actriz principal da peça e a moderadora dos jogos que decorrem em cena. “A parte teatral também está no canto e no coro [as áreas que trabalho diariamente], mas o maior desafio é coordenar tudo com a parte electrónica, porque não são propriamente coisas que vêm na partitura”, confessa.

De Trump a Weinstein

É Raquel quem dá o mote para o arranque do concurso, com o jogo Crab the Kitten, anunciado pela imagem satírica de um caranguejo com a cabeça de Donald Trump. Ao mesmo tempo, passa de forma intermitente um excerto do polémico vídeo de 2016 que mostrava o então candidato às presidenciais norte-americanas a utilizar expressões grosseiras relativamente a mulheres, em conversa com o ex-apresentador da NBC, Billy Bush.

Neste desafio, são lançados para a plateia oito gatinhos de peluche, quatro azuis e quatro cor-de-rosa. O objectivo é que o público levante bem os braços e, independentemente do género e da cor, apanhe um dos bonecos para subir ao palco e responder a algumas questões sobre o tema.

No intervalo fictício, há lugar para notícias de última hora que dão conta da invenção de uma “pílula anti-concepcional para homens que acham que a gravidez é cansativa”, acompanhadas de uma faixa que faz lembrar o genérico de um telejornal. Na publicidade, há anúncios a produtos como o “ASS – Spray Anti-Sexismo”: um canalizador vai arranjar uma tubagem e, ao ser recebido pela dona da casa, pergunta pelo marido, sendo imediatamente borrifado pelo spray. Nem os filmes da Disney escapam à crítica sagaz que é feita em palco. A história da “Cinderela, que deu cabo do pé para que ele coubesse no sapato”, é apresentada “num áudio-livro com narração de Harvey Weinstein”, o produtor de Hollywood que protagonizou o escândalo sexual de 2017, dando origem ao movimento #MeToo.

“Esta peça não vai mudar o mundo ou fazer a diferença na desigualdade salarial ou na maneira como as pessoas são tratadas”, reconhece Philip Venables. “O nosso objectivo é, em primeiro lugar, que as pessoas se divirtam e, depois, que consigam falar sobre temas mais sérios através do humor e do entretenimento.” A crítica não é propriamente subtil, mas também não se procuram impor opiniões ao público.

Em vez disso, num concurso que opõe “os Donalds e as Melanias”, são lançados ao ar conceitos como slut-shaming (a reprovação sofrida por mulheres que se mostram sexualmente abertas e activas e são vistas como promíscuas) manspreading (a prática dos homens que se sentam de pernas abertas nos transportes públicos), ou masculinidade tóxica, concretizada nas vozes do coro que atiram ao ar frases-tipo de uma sociedade preconceituosa, como “Os homens não choram” ou “A música clássica é para gays”.

The Gender Agenda não se assume como um espectáculo político, antes como um espectáculo musical e teatral que serve de trampolim ao debate político e social. A estrutura é leve e orgânica, as questões de género respiram entre as deixas, o vídeo e a música, mas não há hesitação na forma como se põe o dedo na ferida. Às 19h30 desta terça-feira, a bola – ou o gatinho de peluche – passa para o público, cuja adesão determinará a fluidez da peça. “A participação das pessoas será recebida com amor e empatia. No fundo, só queremos que todos se divirtam”, conclui Venables.

O programa do concerto desta tarde passará ainda por Orango, do compositor Oscar Bianchi, em que o público sobe ao palco para criar os sons da peça a partir de instrumentos musicais ou de objectos do quotidiano. A obra conta com a participação especial do Coro Sénior da Fundação Manuel António da Mota e do Psiqué – Grupo de Teatro do Hospital de Magalhães Lemos.

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