Os rés-do-chão do Porto estão esquecidos. Porque não habitá-los?

Um arquitecto portuense desafiou estudantes a converterem antigos armazéns e lojas de Paranhos em habitações, para provar que há muito espaço desaproveitado no Porto. Os resultados podem ser vistos numa exposição, que se inaugura esta sexta-feira, 8 de Junho

Nelson Garrido
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Os alunos tiveram apenas quatro dias para preparar uma maquete em tamanho real de uma habitação Nelson Garrido
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Os alunos tiveram apenas quatro dias para preparar uma maquete em tamanho real de uma habitação Nelson Garrido
João Machado é o professor e arquitecto responsável pelo projecto Nelson Garrido
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João Machado é o professor e arquitecto responsável pelo projecto Nelson Garrido
Há alunos de cinco nacionalidades a participar no projecto Nelson Garrido
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Há alunos de cinco nacionalidades a participar no projecto Nelson Garrido
Todos os materiais utilizados na maquete são reciclados Nelson Garrido
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Todos os materiais utilizados na maquete são reciclados Nelson Garrido

Quantos rés-do-chão vazios, sem utilidade, conseguimos encontrar no Porto? O arquitecto João Machado não sabe um número ao certo, mas afirma que, imediatamente fora do limite do centro histórico percorrido pelos turistas, “60% destes espaços estão abandonados”.

João Machado dá aulas no curso de Arquitectura de Interiores na Escola Universitária Profissional da Suíça Italiana (SUPSI), em Lugano, e todos os anos é-lhe pedido um tema de projecto para propor aos estudantes. Desta vez, não conseguiu fugir ao tópico da gentrificação: “Quando cheguei a Portugal em Setembro, lia todos os dias notícias que denunciavam a falta de habitação no Porto a preços acessíveis. Por outro lado, ao passear pela cidade, via uma extensão infindável destes rés-do-chão abandonados, devolutos, à espera.”

O espaço onde o P3 esteve à conversa com o professor, na Rua António José da Silva, 63, era um deles — esteve 44 anos ao abandono e só agora está a ser recuperado pelo colectivo de arquitectos oitoo. Muitos outros estão esquecidos há décadas. A deslocalização do comércio e dos armazéns da indústria, que dominavam os rés-do-chão da cidade, e a mudança do modelo habitacional são os principais motivos apontados pelo arquitecto: “Com o aparecimento dos condomínios, dos prédios, o rés-do-chão passou a ser visto como tabu. Ou é garagem, terra de ninguém, ou é um supermercado. E, se calhar, pode ser outra coisa.” Foi com essa esperança que desafiou os alunos a converterem cinco rés-do-chão da freguesia de Paranhos em habitações.

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Os alunos tiveram apenas quatro dias para preparar uma maquete em tamanho real de uma habitação Nelson Garrido

Nesta sexta-feira, 8 de Junho, com a apresentação destes projectos no armazém em recuperação, o professor quer mostrar os portuenses que transformar um rés-do-chão numa casa pode ser uma boa aposta: “Os espaços dos rés-do-chão estão em edifícios habitados do primeiro andar para cima. Têm fachadas, têm pavimento e tecto, têm rede de electricidade, água potável, esgotos... Está tudo feito. O preço de construção é claramente competitivo porque não é preciso fazer fundações, paredes, nada. Apenas tem de se organizar o espaço de maneira sensível e flexível para receber as famílias que estejam interessadas.”

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João Machado é o professor e arquitecto responsável pelo projecto Nelson Garrido

De armazém emparedado a casa de família 

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Há alunos de cinco nacionalidades a participar no projecto Nelson Garrido

Durante meses, João Machado procurou os rés-do-chão que iriam ser estudados pelos alunos na Suíça. Escolheu cinco, com dimensões entre os 70 e os 190 metros quadrados, todos eles com espaço para jardim nas traseiras. Depois, a cada rés-do-chão, atribuiu um destino diferente — um para habitação de uma família clássica, um para estudantes, outro para um casal sénior e, ainda, um para uma casa-atelier e outro destinado ao cohousing (a partilha de habitação por mais do que uma família).

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Todos os materiais utilizados na maquete são reciclados Nelson Garrido

Após um semestre a desenhar a transformação, tanto os alunos como o professor aperceberam-se de desafios comuns entre os antigos armazéns e lojas: “Como tirar partido da luz que vem de ambas as fachadas — rua e traseiras —, visto que lateralmente não há luz? Como estabelecer uma relação, um filtro, entre o espaço público e o privado da casa, do passeio público à intimidade do mundo doméstico? Como trabalhar com o habitual pé-direito generoso que pode chegar aos três metros e meio?” Dificuldades que os alunos provaram que já conseguem ultrapassar num workshop no Porto.

Em quatro dias, os alunos tiveram de recriar a definição dos espaços de uma casa comum apenas com materiais reciclados e outros cedidos pela vizinhança. O resultado é uma maquete em tamanho real, uma espécie de “casa a fazer de conta” que se levanta no amplo armazém do colectivo de arquitectos — que já em Março tinha enchido de autocolantes várias fachadas de edifícios devolutos para desafiar os cidadãos a partilharem as suas esperanças para os espaços. A partir desta sexta-feira, pelas 11h, e durante todo o fim-de-semana, o público vai poder visitá-la, para ver como é possível fazer um lar de um rés-do-chão com 22 metros de profundidade, explica João Machado. “Daqui a dias não vamos ter um apartamento-modelo, até porque não acredito que isso exista. Mas vai ser possível percorrer uma série de espaços que nos vão levar para sítios onde já estivemos e que nos vão fazer pensar ‘Ah, aquele rés-do-chão terrível que eu vi, escuro e sujo, pode ser assim’.”

O objectivo da exposição, quer da maquete em tamanho real feita em dias, quer dos projectos que os alunos desenvolveram durante um semestre, é mesmo esse: “combater um certo tipo de ideias pré-concebidas que as pessoas têm acerca de habitar no rés-do-chão”, remata o arquitecto.

No entanto, apesar de ver nestes espaços a possibilidade de serem habitados por famílias a preços controlados, João Machado diz não ser “ingénuo ao ponto de não perceber que também pode ser uma oportunidade de negócio para muita gente”. Aí já é necessário que a autarquia e a população intervenham: “Aquilo que espero é que a sociedade civil e a câmara municipal percebam que há necessidade de proteger um determinado tipo de oportunidades da especulação imobiliária. Isto para podermos encontrar alternativas realistas para as famílias que estão a ser escorraçadas do centro da cidade. Se as alternativas passarem por nova construção, temos de esperar mais três ou quatro anos. Mas porquê construir mais espaços se já há tantos desabitados?”

De Espanha à Índia: “Habitar é um tema universal”

Entre o grupo de alunos que o P3 encontrou a apressar os preparativos para a construção da maquete em tamanho real está Adrien, um jovem franco-alemão que visita o Porto pela primeira vez. Contou ao P3 que não fazia ideia dos problemas de habitação existentes na cidade, mas que se entusiasmou bastante com o desafio que lhe foi proposto — criar uma casa para uma família clássica em 125 metros quadrados: “No meu projecto trabalhei muito com os níveis e, em vez de criar uma nova entrada, usei a principal. A escada que leva ao primeiro andar tem um patamar logo após quatro degraus. Ao subir estes degraus, ficas 75 centímetros mais alto, por isso entras no rés-do-chão num nível diferente e cria-se logo uma relação diferente com o exterior. Entras na casa num nível superior, desces dois degraus para ir para a sala e outros dois para ir para o jardim de Inverno.”

O desafio de Devanshi, jovem indiana, foi outro: trazer luz adequada para dentro de um rés-do-chão de 76 metros quadrados, destinado a uma habitação para estudantes. No final, acabou por conseguir incluir três quartos (um virado para a rua e dois virados para o espaço ajardinado), para além das casas-de-banho, da sala comum e de refeições — a luz acabou por ser suficiente. Ao P3 confessou que está na cidade há pouco tempo, mas que já se deixou conquistar: “É tudo muito bonito. Já viajei muito, mas o Porto tem um carácter muito distintivo, único. Vemos uma fotografia das fachadas e sabemos que é de lá. Uma das coisas que achei fascinante é o facto de ser muito arrojado nas cores dos edifícios, o que é uma raridade. Em Lugano, usam cores muito subtis e suaves. Aqui não e é lindíssimo.”

São 12 os alunos que fazem parte deste projecto, um “autêntico melting pot”. Segundo João Machado, há estudantes suíços, italianos, alemães, espanhóis e indianos. Mas, aqui, as línguas não separam ninguém: “Habitar é um tema universal.”

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