O que fazer com edifícios que estão “à espera” de vida no Porto?

Vários arquitectos encheram com autocolantes a fachada de um edifício devoluto e desafiaram as pessoas a partilharem as suas esperanças para o espaço. O projecto, que se estreou na Rua dos Bragas a 2 de Março, vai passar por mais locais do Porto.

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“Eu queria que isto fosse...” é o que está escrito nas centenas de autocolantes Nelson Garrido
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Companhia Aurifícia, na Rua dos Bragas, um dos muitos edifícios devolutos da cidade Nelson Garrido

O dia não convida ao passeio — a chuva e o vento empurram as pessoas para debaixo dos tectos tão depressa quanto podem. Mas, na Rua dos Bragas, há vários arquitectos que, com a caneta numa mão e o guarda-chuva noutra, convidam a gente do Porto a parar para pensar na cidade e no que falta nela. “Eu queria que isto fosse...” é o que está escrito nas centenas de autocolantes que, na sexta-feira, 2 de Março, foram afixados na fachada da Companhia Aurifícia, um dos muitos edifícios devolutos da cidade.

A ideia não é nova. Em 2010, a artista Candy Chang usou a cidade de Nova Orleães como tela para o projecto participativo de arte pública I wish this was. Milhares de autocolantes foram colocados em lotes devolutos para convidar os moradores a manifestarem as suas expectativas para os espaços. E o colectivo de arquitectos oitoo quis replicar a experiência na cidade portuense. O objectivo? Abrir o debate público acerca das necessidades da comunidade e relembrar ao cidadão “que é o actor principal da cidade”, revela Laura Lupini, uma das arquitectas do grupo.

São muitos os que fogem do pedido dos arquitectos. “Pararmos para pensar no interesse colectivo é uma coisa muito complicada, quando há tantas preocupações mais imediatas”, comenta André Bateira, outro membro do colectivo. Mas, mesmo debaixo de uma tempestade, há miúdos e graúdos, turistas e residentes, que aceitam o desafio. E aquela parede de azulejo torna-se uma extensa lista de desejos, escrita a mil mãos e em várias línguas. Mistura-se o italiano, o espanhol e o inglês com o português. Misturam-se pedidos tão distintos como hostels e habitações sociais. Pedidos que são também sinais dos tempos, como aquele que afirma: “Eu queria que isto fosse... para os portuenses.”

Luís foi um dos que pararam para escrever. Tem 20 anos e gostava que aquele espaço “albergasse instituições de solidariedade social”: “Queria que fosse um espaço que contribuísse para a reabilitação e reintegração de população sem-abrigo e carenciada, visto que esta é uma zona em que essa população existe em massa e está a ser afastada.” E não é o único a pedir o mesmo. Mas, antes de escrever a sua vontade, toma o seu tempo para pensar e olhar para o edifício, por dar “muito valor” e “levar a sério” iniciativas como esta: “Isto está a pedir às pessoas que reflictam sobre um espaço comum. E este sentimento de comunidade, o termos alguma coisa a dizer sobre o que vemos e não estarmos só aqui a passar... É bom.”

Horas antes, já Bárbara, de 19 anos, tinha deixado a sua opinião no mural da Rua dos Bragas, onde mora: “Eu acho que o que falta, e o que se vê logo, é habitação para os portuenses. Vêem-se muitos hostels e hotéis e pouca oportunidade para as pessoas do Porto viverem cá. E até residências para estudantes é algo que faz muito falta.”

Querem abrir as portas

Outro propósito desta acção de intervenção é provar que não é preciso gastar muito dinheiro para dar um novo uso a estes edifícios que estão “à espera”. Mesmo que não seja um uso permanente, explica Laura: “Quando há um edifício abandonado, o primeiro passo que se dá é construir e injectar muito dinheiro para lhe dar uma função permanente. Isso demora anos, prevê diversas autorizações. E há um período temporal em que esses edifícios ou lotes vazios estão sem função.”

Um jardim, um parque infantil, um cinema ao ar livre ou simplesmente um atalho ajardinado para a Rua Álvares Cabral. Estas são algumas das sugestões de Laura para o que poderia ser oferecido, se se abrissem as portas nesta fase intermédia que a antiga Companhia Aurifícia vive. O imóvel do século XIX, cujas instalações vão, precisamente, da Rua dos Bragas à Álvares Cabral, foi colocado à venda pelos proprietários em 2013 — e é a esse ano que remontam as últimas notícias.

“Jardim” e “espaço verde” são, aliás, palavras que se repetem vezes sem conta neste mural de expectativas. Também não falta quem peça centros culturais, museus, cinemas e espaços de lazer. E, apesar de não estar nas suas mãos decidir o futuro do espaço, o colectivo acredita que as visões dos portuenses podem e devem ser ouvidas pelos proprietários.

Oito amigos da faculdade

Na sua maioria, o atelier oitoo é formado por amigos que se conheceram na universidade. Estudaram na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto e partiram depois em direcções diferentes, calcorreando cidades como Londres, Basileia, Milão, Mendrisio e Pequim. Foram à procura de oportunidades que não existiam em Portugal — um país de “realidade difícil” para os jovens recém-licenciados na área — e lá ficaram durante vários anos.

Isto até João Machado ter escrito uma carta aos colegas com a ideia para um novo projecto: um escritório de arquitectos com a função de observatório, dedicada à discussão e realização de acções em volta de lotes e edifícios subaproveitados ou esquecidos. O desejo de fazer algo para lá do papel clássico do arquitecto e a vontade de regressar a casa surtiu efeito. E, em Setembro, abriram portas.

Durante um ano e meio, a equipa mapeou os diversos espaços desocupados da cidade. Para o projecto, escolheram quatro: para lá da intervenção na Rua dos Bragas, a iniciativa pretendia ter ido na última sexta-feira à Rua Álvaro Castelões, mas teve de cancelar a iniciativa por causa do mau tempo, à Rua de Cedofeita (16 de Março) e à Rua da Constituição (23 de Março), sempre entre o meio-dia e as 18h.

E, mesmo depois de Março, estas pequenas caixas de opinião podem voltar a aparecer por aí, sem lá estarem os arquitectos de canetas na mão. Aplicar os autocolantes de uma só vez e deixar que as pessoas escrevam livremente é uma das ideias do colectivo, remata Laura: “A artista que nos inspirou colava os autocolantes em banda e deixava uma caneta pendurada na parede. E as pessoas que por lá iam passando reparavam que havia ali uma oportunidade, uma coisa devoluta que podia servir à cidade. Nós agora estamos nesta acção. Mas a ideia é que o debate continue para lá disto.”

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