Fundamentos económicos do mercado de habitação: a (anti)reforma

Ao arrepio dos fundamentos económicos deste mercado, as medidas agora propostas incidem sobretudo sobre o lado da procura, o que tenderá a agravar os problemas neste sector.

O governo anunciou recentemente uma auto-intitulada (anti)reforma no sector da habitação que arrisca, por desconhecimento ou negligencia dos fundamentos básicos de funcionamento da economia neste mercado, transformar-se em mais um conjunto vazio de enunciados e propostas que apenas serve para entreter a classe política e os comentadores alinhados. Ela pode, pelo contrário, vir a gerar efeitos contrários aos desejados, em particular dificultando o acesso à habitação a custos compatíveis com os níveis de rendimento aos mais jovens e carenciados, gerar entropia nos equilíbrios de mercado nos vários segmentos de ofertas habitacionais, contribuir para a falta coesão social e territorial do país, comprometer a qualificação do edificado, entre outros efeitos.

A estruturação de qualquer reforma no mercado da habitação passa por compreender que este não é um mercado igual aos demais. A procura de habitação depende dos níveis de rendimento real das famílias, das taxas de juro praticadas no crédito imobiliário, da disponibilidade de crédito por parte da banca, dos níveis de endividamento (para os quais o Estado contribuiu durante décadas através de bonificações fiscais dos juros e do aniquilamento do mercado de rendas), do número de casamentos e divórcios, da confiança dos consumidores relativamente ao futuro (a decisão de comprar casa é um compromisso de vida), dos níveis de crescimento económico, de particularidades geográficas, dos níveis de desemprego, do papel dos fundos de investimento imobiliário, das tendências demográficas e de mobilidade no território e internacional, dos preços dos bens substitutos, em particular do custo da principal alternativa – o arrendamento para habitação.

A estes determinantes acrescem, no caso português, factores de procura extraordinários que pressionam os preços em alta, com particular destaque para a criação do programa de vistos “gold” que, entre as várias condições de elegibilidade, inclui a opção de adquirir bens imóveis de valor igual ou superior a 500 mil euros, a explosão da procura turística direccionada para o alojamento local, a dinâmica gerada pelas plataformas digitais de reserva e o regime fiscal para não residentes, que atraiu procura externa para este mercado, em particular beneficiários de pensões e profissionais de actividades de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico.

No lado da oferta do mercado, os principais determinantes da disponibilidade de imóveis para habitação ou escritórios são naturalmente os custos de construção e reabilitação, incluindo a disponibilidade de solos e respectivo preço, os salários praticados no sector, o custo dos materiais de construção, os custos do licenciamento, o investimento público em habitação social, a fiscalidade praticada e a política de subsidiação no sector, o número de empresas a operar e o nível concorrencial, os custos da intermediação imobiliária, os custos e disponibilidade de crédito para construção, entre outros.

Acontece que ao contrário da procura (e ao que se verifica noutros mercados), a oferta no mercado de habitação é altamente inelástica no curto prazo, o que faz com que os preços de compra e de arrendamento sejam determinados essencialmente pela procura. Nos tradicionais segmentos do mercado financeiro, as bolhas especulativas são mitigadas pela possibilidade de efectuar vendas a descoberto e/ou tomar posições curtas mediante derivados financeiros. No mercado da habitação tal não genericamente possível (com excepção de alguns ETFs) de forma directa dado que o activo não é fungível pelo que é mais difícil travar a especulação e o empolamento dos preços.

As razões da baixa elasticidade-preço da oferta são bem conhecidas em economia e tem que ver, entre outros factores, com o período de tempo necessário para disponibilizar nova habitação (um projecto pode demorar anos a ser licenciado e concluído), a escassez e imobilidade dos solos, matéria em que os municípios têm particulares responsabilidades pela forma como condicionaram durante décadas o uso dos solos e empolaram os preços, a disponibilidade de mão-de-obra qualificada e o custo das matérias-primas.

As falhas de mercado neste sector são bem vincadas em Portugal: edifícios abandonados e/ou vazios, crónica sub-oferta de habitação, imobilidade no mercado de trabalho e no território devido ao custo de alojamento, fiscalidade do imobiliário que amarra as famílias à casa de família, desigualdade no acesso à habitação com penalização dos estratos económicos e sociais mais desfavorecidos, assimetria de informação entre compradores e vendedores, que propicia práticas especulativas, florescimento da economia paralela.

Neste cenário, algumas das propostas recentemente apresentadas para debate lançam fundadas razões para temer as consequências da sua introdução. A proposta de requisição forçada de imóveis de propriedade privada, constitucionalmente permitida mas apenas de forma temporária e com direito a uma indemnização ao proprietário enquanto subsistir, viola claramente a protecção dos direitos de propriedade das famílias que durante décadas pouparam com enorme sacrifício pessoal para comprar uma habitação, pagando impostos duas vezes (pelos rendimentos do trabalho e pelos rendimentos de capital grados pela poupança) e afugenta o investimento no sector imobiliário, agravando a escassez de oferta. O Estado pode e deve desenvolver uma política social de habitação mas não à custa dos trabalhadores que pouparam para ser proprietários. O regresso do congelamento no mercado de arrendamento, o premiar dos inquilinos caloteiros que “ocupam” e degradam durante anos imóveis sem pagar a respectiva renda e sem qualquer tipo de punição legal mais não fará do que retirar do mercado de arrendamento mais imóveis aos poucos que já subsistem, desviando-os para outras finalidades com sejam o próspero segmento do alojamento turístico, mais rentável e flexível e imune às tentações populistas do momento, ou contribuir para a expansão do mercado ilegal.

Em sentido contrário, medidas como a criação de incentivos fiscais ao arrendamento, independentemente da duração dos contratos, a criação de subsídios aos arrendamento para famílias carenciadas, a simplificação dos procedimentos de despejo em caso de incumprimento contratual, o aumento da oferta de habitação social, a criação dos fundos de investimento imobiliários, uma política de solos direccionada para a construção de habitação a preços controlados, a eliminação da distorção induzida pelo programa de vistos gold e a simplificação (sem perda de rigor) do processo de licenciamento contribuiriam, a prazo, para estimular a oferta de construção e arrendamento residencial, ajustando igualmente os preços de equilíbrio neste mercado.

A estabilização dos preços e a sua adequação aos níveis de rendimento locais exigiria medidas que incidissem sobretudo no lado da oferta do mercado, medidas que levam tempo a produzir efeitos, desde logo eleitorais. Mas não. Ao arrepio dos fundamentos económicos deste mercado, as medidas agora propostas incidem sobretudo sobre o lado da procura, um modelo de intervenção que gera simpatias mediáticas no curtíssimo prazo mas tenderá a agravar os problemas neste sector.

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